Marco Weissheimer
Fotos Gabriel Santos
Sul21
Adolfo Pérez Esquivel, Nobel da Paz em
1980, precisou falar apenas um minuto no Senado brasileiro para sentir de perto
a fúria da oposição que busca derrubar a presidenta Dilma Rousseff. O arquiteto
e ativista argentino utilizou a palavra “golpe” para definir o que está
acontecendo hoje no Brasil, o que levou a oposição a exigir do senador Paulo
Paim (PT-RS), que presidia a sessão, a retirada da palavra dos anais da sessão,
demanda que acabou atendida. “Não falei mais de um minuto. Eles me pediram para
que eu fizesse uma saudação e eu expliquei por que estava aqui no Brasil, para
apoiar a democracia, a continuidade constitucional e evitar a consumação de um
golpe de Estado”, relata Esquivel em entrevista ao
Sul21.
Na entrevista, o arquiteto e ativista
argentino chama a atenção para o fato de que o que está acontecendo no Brasil
não é um ponto fora da curva, mas sim parte de um projeto de recolonização da
América Latina capitaneado pelos Estados Unidos. Para Esquivel, não há acasos
em tudo o que está acontecendo agora contra o governo de Dilma. “Isso faz parte
de um projeto de recolonização continental. Já houve experiências piloto no
continente que devem ser lembradas. A metodologia é a mesma. O que aconteceu em
Honduras, com a derrubada de Manuel Zelaya, e depois no Paraguai, contra o
governo de Fernando Lugo, foram ensaios de golpes de Estado de um novo tipo”,
sustenta.
“Esse projeto”, acrescenta, tem como
objetivos estratégicos o controle dos nossos recursos naturais e, como já disse
Michel Temer, a privatização das empresas estatais”. “Esse é o objetivo do
golpe de Estado. Caso ele se consume, o país terá um governo com essa agenda
que não foi eleito pelo povo”.
Sul21: Como o senhor avalia a situação política que o Brasil vive hoje, em
especial a tentativa de derrubada do governo da presidente Dilma Rousseff?
Adolfo Pérez
Esquivel: Pelo trabalho que realizo, sempre olho para a realidade de um país da
América Latina sob a perspectiva de uma visão continental. Não há casualidades
em tudo o que está acontecendo agora contra o governo de Dilma. Isso faz parte
de um projeto de recolonização continental. Já houve experiências piloto no
continente que devem ser lembradas. A metodologia é a mesma. O que aconteceu em
Honduras, com a derrubada de Manuel Zelaya, e depois no Paraguai, contra o
governo de Fernando Lugo, foram ensaios de golpes de Estado de um novo tipo.
Golpes de Estado que não necessitam dos exércitos. Basta ter os meios de
comunicação, alguns juízes e dirigentes políticos da oposição para provocar a
desestabilização de um governo.
O que me assombra é que tenham escolhido
o Brasil, um país líder no continente, para aplicar esse modelo de golpe. É o
mesmo procedimento dos ensaios realizados anteriormente: o uso massivo dos
meios de comunicação para alimentar um processo de desprestígio por meio de uma
série de acusações, a cumplicidade de alguns juízes, como é o exemplo de Sérgio
Moro, que chegou a vazar escutas telefônicas privadas envolvendo o
ex-presidente Lula e a própria presidente da República. O que Dilma fez de
errado, afinal, para justificar um impeachment? Ela utilizou procedimentos que
outros governos anteriores também aplicaram e não sofreram nenhum tipo de
sanção por isso. Contra Dilma, bastou isso para justificar um pedido de
impeachment. Isso é, abertamente, um golpe de Estado brando. Há alguns dias,
disse isso no Senado brasileiro e houve um escândalo. Não falei mais de um
minuto…
Sul21: E pediram para retirar a palavra “golpe” das atas do Senado relativas ao
seu pronunciamento…
Adolfo Pérez
Esquivel: Sim. Eles me pediram para que eu fizesse uma saudação e eu expliquei por
que estava aqui no Brasil, para apoiar a democracia, a continuidade
constitucional e evitar a consumação de um golpe de Estado. Bastou isso para
provocar uma situação conflitiva. Mas é preciso fazer uma leitura mais profunda
sobre o que está acontecendo no Brasil. Essa leitura para além da superfície
tem a ver com o projeto em curso de recolonização do continente. Esse projeto
tem alguns objetivos estratégicos: o controle dos nossos recursos naturais e,
como já disse Michel Temer, a privatização das empresas estatais. Esse é o
objetivo do golpe de Estado. Caso ele se consume, o país terá um governo que
não foi eleito pelo povo, que ficará marginalizado da ação democrática. Como
ocorreu em Honduras e no Paraguai, isso terá como consequência uma forte
repressão aos movimentos sociais. Essa é a lógica da imposição de uma política
regressiva: provocar situações de conflitos sociais e usar a forma repressiva
para conter esses conflitos. Já há uma lei antiterrorista aprovada pelo
Congresso, como aconteceu em quase todos os países.
Há uma diferença entre o que está
acontecendo no Brasil e o que vemos hoje na Argentina, onde a direita chegou ao
governo por meio de eleições livres. Ganhou por muito pouco, mas ganhou e está
legitimada pelo voto. Nos primeiros quatro meses de governo, Macri levantou
impostos que eram cobrados de empresas mineradoras e de latifundiários, entre
outras medidas. O Observatório Social da Universidade Católica argentina
registrou que, neste período, o país já tem um milhão e quatrocentos mil de
pobres a mais e cem mil desempregados a mais. Isso em quatro meses apenas.
Sul21: Na sua avaliação, esse projeto de recolonização tem os Estados Unidos como
centro de origem e de articulação?
Adolfo Pérez Esquivel: Sim, é uma política
dos Estados Unidos, que nunca abriu mão de seu objetivo de ter a América Latina
como seu quintal. A política norte-americana nos golpes em Honduras e no
Paraguai ficou muito clara. É preciso ter em mente que os Estados Unidos e
também a Europa estão esgotando seus recursos e necessitam dos recursos
naturais de nossos países, incluindo recursos minerais estratégicos e os
recursos do Aquífero Guarani, uma das grandes reservas mundiais de água, um bem
cada vez mais escasso. Então, não são pequenos os interesses dos Estados Unidos
na região. Não é por outra razão que eles mantém bases militares na Amnérica Latina
Se olharmos para a história recente da
América Latina, houve outras tentativas de golpe de Estado no Equador, na
Bolívia e na Venezuela que vive uma situação crítica, onde a posição ganhou o
Parlamento e o governo de Nicolas Maduro está muito debilitado, com graves
problemas econômicos, fundamentalmente causados pela queda do preço do
petróleo, base da economia venezuelana. Então, as tentativas de golpe de Estado
na América Latina não terminaram. Houve algumas muito violentas, com muitas
mortes, como a que ocorreu no massacre de Pando, na Bolívia. No Equador,
tivemos uma tentativa de golpe disfarçada de uma mobilização salarial da
polícia. Era uma tentativa de golpe de Estado contra Rafael Correa. Esse é o
panorama que temos hoje na região. Teríamos que falar ainda de Haiti,
Guatemala, El Salvador e Honduras onde ocorreu uma repressão brutal, com mortes
como a de Berta Caceres, uma dirigente do povo Lenca com a qual trabalhamos em
Honduras.
Sul21: Voltando um pouco à situação da Argentina, nos primeiros meses do governo
Macri houve também um aumento da repressão aos movimentos sociais e um dos
principais símbolos disso foi a prisão de Milagro Sala. Qual é o cenário atual
desse quadro de repressão e violação de direitos?
Adolfo Pérez
Esquivel: Milagro Sala é uma presa política. Ela foi presa por conta de um protesto
social organizado por cooperativas e pelo grupo Tupac Amaru. Nós fomos
visitá-la na prisão, na província de Jujuy, cerca de 1.500 quilômetros de
Buenos Aires. Falamos também com o governador de Jujuy, Ruben Gerardo Morales.
Após a prisão de Milagro Sala começaram a surgir uma série de outras acusações contra
ela, envolvendo denúncias de corrupção e outras coisas. Mas ela foi condenada
antes de ser julgada. Ela é uma presa política já há quatro meses e nós
cobramos isso do governador. Houve também uma forte repressão policial em
Buenos Aires e em outros lugares contra protestos de trabalhadores. O governo
Macri vai avançando em suas políticas neoliberais. Até agora, não falou
abertamente sobre isso, mas planeja a privatização de empresas do Estado.
Macri também está fazendo um acordo com
os fundos abutres para o pagamento de uma dívida externa imoral e ilegítima. Aí
temos um problema que vem dos governos anteriores que não fizeram uma auditoria
para determinar o que é dívida legítima e o que não é. Agora, Macri necessita
de recursos para enfrentar a situação do país e está tentando obter empréstimos
com altas taxas de juro. Os orçamentos para educação e políticas sociais
sofreram grandes cortes e as obras do Estado estão paralisadas. As
universidades também sofreram um drástico corte orçamentário. De modo geral,
elas têm recursos para pagar os salários do mês de junho e depois não se sabe
como será.
Sul21: Diante desse cenário de avanço conservador, qual é, na sua opinião, a
capacidade de reação dos movimentos sociais e do movimento sindical na
Argentina, no Brasil e em outros países da América Latina? Há força suficiente
para resistir a esse projeto de recolonização?
Adolfo
Pérez Esquivel: Os movimentos sociais estão muito fragmentados e isso coloca-os em uma
forte situação de debilidade. Não há coesão ou força integradora entre eles. No
caso da Argentina e de outros países da América Latina, a política de direitos
humanos também enfrenta sérias dificuldades já há algum tempo. Esse projeto de
recolonização terá um impacto negativo muito grande para a população,
especialmente para os setores mais carentes. Há uma cláusula democrática dentro
de organismos regionais como Mercosul e Unasul, que já foi aplicada ao Paraguai
por ocasião do golpe contra Lugo. O Paraguai foi suspenso desses blocos
regionais. Não sei se isso vai acontecer com o Brasil. Se, do golpe, surgir um
governo Temer penso que ele terá o reconhecimento ao menos dos Estados Unidos e
da Argentina. Na Argentina, o governo Macri está rechaçando os acordos
regionais.
Sul21: Aqui no Brasil, estamos assistindo à emergência de grupos de direita e
mesmo de extrema direita, com traços fascistas, que contam inclusive com
representação parlamentar como é o caso do deputado Bolsonaro que,
recentemente, voltou a fazer apologia de torturadores. Esse fenômeno também
está ocorrendo na Argentina ou em outros países da região? Até que ponto, essa
emergência preocupa?
Adolfo Pérez
Esquivel: Na Argentina, isso não é muito evidente. Houve editoriais apoiando a
ditadura, como o publicado pelo jornal La Nación no dia seguinte à posse de
Macri, defendendo a libertação de militares condenados por crimes na ditadura.
Há grupos de direita, mas, neste momento, como estão praticamente no governo,
não se manifestam publicamente. Isso não significa que não existam. Aqui no
Brasil me chama muito a atenção o fato de um deputado ter feito a defesa de um
torturador. Isso é a apologia de um crime, um delito. Não sei como vão tratar
isso, pois os deputados têm foro privilegiado. A questão importante é se haverá
unidade dos movimentos sociais e populares para enfrentar essa situação.
Sul21: O senhor acompanha a situação dos direitos humanos na América Latina há
muitos anos. Após um ciclo de ditaduras houve um período de redemocratização e
uma ascensão de governos de esquerda e progressistas na região. Agora, parece
que estamos entrando mais uma vez em um período conservador com regressão no
campo dos direitos. Parece que parcelas importantes das sociedades
latino-americanas abrem mão muito facilmente de direitos. Como avalia a
situação atual após um período em que ocorreram importantes avanços na área dos
direitos humanos e sociais?
Adolfo Pérez
Esquivel: Neste último período, nós acompanhamos com preocupação a situação dos
direitos humanos mesmo em governos democráticos. Há governos que não têm
políticas repressivas, mas há como que uma base já institucionalizada. Em
muitos países, as torturas em prisões e delegacias de polícia, por exemplo,
continuam até o dia de hoje. Na Argentina, esse problema é tremendo. Nós
fizemos um trabalho de monitoramento da situação em prisões e delegacias. No
ano passado registramos mais de 100 mil casos de tortura em 50 instituições
penitenciárias. Não são políticas de Estado, mas sim mecanismos e práticas que
seguiram vivas nas forças de segurança e que seguem vigentes.
Os direitos humanos seguem sendo
violados porque há impunidade jurídica. Quem viola os direitos humanos sempre é
o Estado. Fora disso, há os delitos que devem ser enquadrados na legislação
vigente. A situação dos direitos humanos, considerados em sua integralidade, é
preocupante em muitos países. Não estou falando apenas de torturas ou mortes,
mas também de problemas ambientais, dos agrotóxicos, do impacto das grandes
mineradoras. Há casos como o do Chile, onde a lei antiterrorista foi aplicada
contra o povo mapuche.
Direitos humanos e democracia são
valores indivisíveis. Se os direitos humanos são violados, a democracia se
debilita. Estamos trabalhando para tentar uma mudança de comportamento e de
mentalidade, mas há muitas consciências armadas com práticas repressivas. Antes
de vir ao Brasil, estivemos no México, país que tem mais desaparecidos que a
Argentina na época da ditadura, com governos constitucionais. Em Cidade Juarez,
até sairmos de lá, havia a marca de 1.500 mulheres assassinadas por
feminicídios. Estamos falando da fronteira com os Estados Unidos. No estado de
Guerrero, temos o caso dos 43 estudantes que desapareceram e sobre os quais não
há notícia até hoje. Passou um ano e meio e não se sabe absolutamente nada do
paradeiro de 43 estudantes. Não estamos falando de uma ditadura.
No México, nos reunimos com o presidente
da Comissão Nacional de Direitos Humanos e ele nos relatou as muitas
dificuldades enfrentadas para avançar nas investigações sobre casos de
violações de direitos naquele país. Há uma situação de terror muito grande.
Tanto é assim que o governo dos Estados Unidos emitiu um comunicado recomendando
aos turistas norte-americanos para que não viajem ao estado de Guerrero, em
especial para Acapulco. Estivemos em Acapulco e os hotéis estão vazios. Claro
que, no caso do México, penetrou com muita força o problema da droga, dos
carteis do narcotráfico. Uma coisa que nós podemos comprovar na América Latina
é que as guerras, hoje, são financiadas com a droga. Isso está acontecendo
agora no Oriente Médio também. As guerras têm que ser financiadas de algum modo
e estão sendo pelas drogas. Por isso, elas não vão desaparecer tão facilmente
assim. O narcotráfico está desempenhando um papel sumamente importante hoje na
economia das guerras.
Então, quando falamos da realidade da
América Latina hoje supomos que todos os governos são democráticos, mas isso
não é assim. Veja o caso da Colômbia também, onde agora está prestes a ser
assinado um acordo de paz com as FARC. Mas o problema da Colômbia não se resume
à relação entre as FARC e o governo de Santos. São quase 60 anos de guerrilha,
mas também de narcotráfico, de grupos paramilitares e parapoliciais. O panorama
do continente é muito complexo.
Adolfo Pérez
Esquivel: Eu sempre digo que sou um pessimista esperançoso. Eu não penso que não há
saída para todos esses problemas. Sempre há saídas e possibilidades de mudança,
desde que o povo se una. Na América Latina, as esquerdas estão divididas. A direita
tem dificuldades, mas não está dividida porque tem objetivos claros. Mas as
esquerdas estão muito divididas na Argentina, no Brasil, em qualquer país.
Assim, é difícil construir frentes que possam oferecer alternativas a essa
situação da qual falamos. Se o golpe se consumar aqui no Brasil o que vai
ocorrer com a população. Estamos aqui acompanhados de movimentos sociais e de
grupos comprometidos com a defesa da democracia, mas qual é a força real que
têm?
O que me preocupa, no caso do Brasil,
são as possíveis repercussões em todo o continente e no mundo inteiro. O Brasil
é um país líder, com uma presença importante não só na América Latina. Para
mim, com tudo o que escutei nestes dias, me parece que o afastamento de Dilma
já é praticamente um fato consumado, a não ser que, de última hora, a situação
atual possa ser revertida. Mas não é para se desesperar. Sempre há
possibilidades de mudanças. O fato é que os Estados Unidos seguem trabalhando
pela recolonização da região pois necessitam dos recursos deste continente.
Já devastaram a África, que não é um
continente pobre, mas é um continente empobrecido. A África tem grandes
recursos que estão sendo explorados por grandes corporações. Eu participei de
uma comissão de investigação sobre a África do Sul e a Namíbia. Durante os oito
meses que durou a comissão creio que não dormi em função do que vi, os
indicadores de pobreza, o saqueio sem piedade dos recursos destes países.
Levamos o resultado dessa investigação à Assembleia Geral das Nações Unidas,
onde foram aprovadas sanções que não foram cumpridas.