O Prémio Sakharov
para a “Liberdade de Pensamento” de 2017 foi atribuído à Assembleia Nacional
que confrontou o governo nos meses anteriores e a “todos os presos políticos”
que integraram as fileiras da oposição à administração de Nicolas Maduro. A
RTP, Antena Um e outros media “pluralistas” não ouviram as autoridades
venezuelanas nem os familiares dos muitos mortos civis e militares causados pelos
criminosos, arruaceiros, franco-atiradores da extrema-direita e fascistas que,
nesse mesmo período, vandalizaram e saquearam lojas e o espaço urbano em
Caracas e noutras cidades.
Apesar dos “laureados” terem sido derrotados nas eleições
para a Assembleia Nacional Constituinte e agora nas eleições regionais, a
direita do Parlamento Europeu quis dar-lhe uma mãozinha.
A decisão foi tomada em reunião dos presidentes das famílias
políticas com assento no Parlamento Europeu, por proposta do Partido Popular
Europeu (PPE) e Liberal (ALDE), e contou com fortes protestos de deputados que
gritaram a famosa consigna antifascista “No pasarán”.
Esta atribuição do prémio aos sectores mais extremistas da
oposição é tanto mais incompreensível quando o seu chefe Enrique Capriles, que
foi derrotado para o lugar de governador do estado de Mérida - que tinha vindo
a ocupar - pelo candidato do PSUV, partido do governo, consumou há dias uma
fractura com outros sectores da oposição que designou por traidores por quatro
dos seus novos governadores de estado terem prestado juramento diante da
Assembleia Nacional Constituinte.
A situação hoje na Venezuela
apresenta alguns grandes traços.
Depois de um período de silêncio resultante da derrota da direita
nas eleições regionais do passado dia 15, a campanha internacional contra a
Venezuela reacende-se.
As carências de artigos nos supermercados e de medicamentos nas farmácias estão
ser aproveitadas para o relançamento de uma direita que, entretanto, se dividiu
enquanto a revolução bolivariana se consolidou nas urnas.
A participação popular efectiva (Comunas, Conselhos Comunais e Comités Locais
de Abastecimento e Produção) vai-se assumindo como característica essencial do
futuro regime democrático a sair dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte
(ANC).
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Estas são novas instituições de iniciativa popular que fazem frente ao boicote
económico, à corrupção e ao mercado negro nos circuitos de abastecimento da
alimentação e medicamentos, resultantes nomeadamente das importações.
A economia vive essencialmente do petróleo. Não tem havido
condições para diversificar a economia. Com limitações resultantes do preço do
petróleo, da falta de abastecimento do mercado interno por empresas que
trabalham apenas para a importação. Estas com subsídios do Estado.
A direita dividiu-se e Nicolás Maduro procura que se dê
andamento às negociações para a paz com a direita, que se concluíram no final
do ano passado.
A cooperação com a China está a contribuir para diversificar
a economia.
Mas a economia continua a ser asfixiada, prossegue o
impedimento à compra no exterior de medicamentos e alimentos, o bloqueio aos
sistemas financeiros, o assédio mediático internacional, a criação de
descrédito, e o cerco diplomático.
No que respeita às eleições
regionais do passado dia 15 de Outubro, 18 estados foram ganhos por
apoiantes do governo e 5 pela oposição. Os “chavistas” ganharam à oposição estados que eram da
direita (o caso mais significativo, a que já nos referimos, é o estado de
Mérida, anteriormente governado pelo então chefe da MUD (1), Enrique Capriles).
No cômputo geral a oposição passou de 3 para 5 estados, e os
“chavistas” tiveram agora 54% dos votos, enquanto a oposição se quedou pelos 45%.
Das legislativas, que venceu em 1975, até agora, a oposição
perdeu 3 milhões de eleitores dos 7 milhões que tivera nessas eleições, devido
ao trabalho do governo e à reacção da população à violência em que a direita
mergulhou o país desde então, com apoio institucional da maioria da Assembleia
Nacional e da Procuradora Geral da República, entretanto já demitida pela ANC.
Os “chavistas” perderam em estados da fronteira com a Colômbia
(“Lua Crescente”,) onde o crime, o contrabando e o narcotráfico fazem lei, o
que poderá levar à perda do controlo estratégico dessa fronteira, dificultando
o controlo do crime e o seu combate por parte do governo central.
Alguns líderes da direita invocaram fraude, como sempre
fizeram ao longo de todas as eleições desde 1999, mas vários dos seus
dirigentes, desta vez, reconheceram a derrota.
Quatro dos cinco novos governadores da oposição tomaram
posse no quadro da Assembleia Nacional Constituinte. O provocador Capriles saiu
da presidência da MUD e foi substituído por um homem de direita, aparentemente
mais conciliador, Allup.
Nas eleições do passado 15 de Outubro funcionaram no país 13
559 assembleias de voto e 30 274 mesas eleitorais. A taxa de participação foi
de 61,4%, muito alta para eleições regionais. O número supera os de processos
similares em países como o México, o Chile, a Colômbia, os Estados Unidos, a
França ou a Alemanha.
A Venezuela celebrou 22 eleições em 18 anos, o que dá uma
média de mais de um dia por ano, superior ao que acontece em outros países
cujos governantes consideram mais democráticos. A oposição só ganhou as
legislativas de 2015.
O sistema eletrónico de votação da Venezuela é o mais
moderno do continente. Vários dias antes das eleições, todos os partidos da
direita e da esquerda participaram nos ensaios técnicos do voto, assinando um
relatório atestando a sua fiabilidade. Já em 2012, o sistema eleitoral
automatizado da Venezuela tinha sido qualificado pelo Centro Carter “como o
melhor do mundo”.
Ao contrário do que os média querem fazer crer ao mundo
inteiro, a direita venezuelana tem ao
seu dispor todos os meios para se exprimir. A maioria dos órgãos de
comunicação social privados e das redes sociais é-lhe largamente favorável nos
planos local, regional, nacional e internacional.
As causas do sucesso
da revolução bolivariana têm assentado:
Na política económica assente na soberania total sobre os
recursos de petróleo, com a distribuição do seu rendimento para fins sociais
(combate à pobreza, melhoria das condições de vida, educação).
Na participação activa das pessoas nas decisões políticas.
Estreita relação com as novas organizações populares que configuram a futura
organização do Estado à luz de uma nova visão política a que a Assembleia
Nacional Constituinte (ANC) dá corpo. No referendo fundador da ANC a oposição
não quis participar, apesar dos esforços feitos para que participasse.
Nas missões sociais criadas para garantir condições de vida
dignas continuam, apesar da redução das receitas (ver adiante).
No aparecimento de um grande número de novos líderes jovens
No que respeita à participação popular, a população
venezuelana intervém directamente na vida política através dos conselhos comunais. Estes conselhos são
comunidades de aproximadamente 200 famílias que moram próximas umas das outras
e que possuem laços entre si. Através de assembleias populares os cidadãos
decidem que obras deverão ser executadas naquela comunidade. Chegam a propor e
aprovar leis, como por exemplo, a Lei da Terras, leis contra o açambarcamento
em supermercados e a própria lei dos conselhos comunais.
As comunas são o
espaço para fortalecer a organização popular, a consciência revolucionária e a
produção local. Uma economia comunal poderosa é um factor essencial na
construção de um novo modelo produtivo.
A partir do percurso da revolução bolivariana, Hugo Chávez
referia “La Comuna, la Comuna es el
espacio sobre el cual vamos a parir el socialismo. El socialismo desde donde
tiene que surgir, que no es desde la Presidencia de la República, no se decreta
esto, hay que crearlo desde las bases, es una creación popular, es una creación
de las masas, es una creación de la nación, es una ‘creación heroica’ decía
Mariátegui (2), es un parto histórico.”
Neste momento, aproveitando condições favoráveis, está a
dar-se um salto qualitativo na construção dos conselhos comunais e das comunas.
A revolução tem
sofrido violentos ataques. A guerra económica dura há mais de três anos
(depois da morte de Chávez) e assenta nas sanções asfixiantes de Clinton e
Trump. A campanha mediática permanente contra o presidente eleito, Nicolas
Maduro. E a queda do preço do crude está a afectar a realização de programas
sociais.
Tudo isto contribuiu para criar dificuldades de
abastecimento para, com apoio mediático, derrubar a revolução bolivariana nas
ruas e nas urnas.
A consciência
política da maioria dos venezuelanos tem resistido a essas pressões, tanto
mais que a direita no ano passado e neste ano criaram tropas de assalto que
destruíram tudo à sua frente (mobiliário urbano, viaturas, lojas,…) e isso fez
reduzir apoios que a direita tinha.
A protecção dos mais vulneráveis a esta guerra fez-se com os
Conselhos Locais de Abastecimento e
Produção (CLAPs) para combater o contrabando e a revenda ilegal de produtos
e com a Caderneta da Pátria,
documento de identidade electrónico que regula o acesso a alimentos e artigos
de primeira necessidade, adquiridos nos CLAP. Isso permitiu maior eficiência
das Missões Sociais criadas com Hugo Chávez.
O objetivo destas
Missões Sociais é garantir à população carente acesso a uma casa, à saúde,
à alimentação e à alfabetização.
Com o apoio de especialistas cubanos, que chegaram ao país
no quadro da aliança Caracas-Havana, o presidente Chávez começou por lançar o
programa pioneiro Bairro Adentro para oferecer os cuidados básicos de saúde nas
zonas mais pobres, e, depois, o plano de alfabetização Robinson.
Foram criadas mais de trinta missões em áreas como a saúde,
educação, alimentação, emprego, moradia, agricultura e segurança.
Com estas Missões Sociais, a indigência na Venezuela caiu de
21,7% em 1999 para 11,7% em 2012, e a pobreza passou de 49,4% a 29,5% no mesmo
período. O país passou a registar a menor desigualdade entre ricos e pobres
entre as nações latino-americanas, de acordo com um relatório da ONU. Esta
progressão tão rápida ficou porém limitada pelos efeitos do bloqueio imposto
pelos EUA, pelos efeitos da crise e aqueda do preço do petróleo.
Na Economia, o sector
estatal tem sido responsável pela grande maioria das exportações enquanto o
sector privado tem efectuado a maior parte das importações.
As empresas privadas são em geral ineficientes e pouco
produtivas, não dando resposta à procura nacional, tendo vivido ao longo da
História dependentes de subsídios estatais. O sector petrolífero é o grande
gerador de divisas mas os grandes beneficiários são os donos dessas empresas (em
2008, o Estado fez 95% das exportações e os empresários parasitários 70% das
importações). Este subsidiar do sector privado para a importação provoca um
desvio de verbas que poderiam ser investidas no aparelho produtivo. Assim
mantem-se uma atitude empresarial subsídio-dependente.
A cooperação com a China desenvolve-se nos telemóveis,
computadores, energia, educação, cultura e produção agrícola. A China
desenvolveu já com a Venezuela 790 projectos (495 já concluídos que receberam
um financiamento de 62 mil milhões de dólares).
A Constituinte rompe com as estruturas partidárias tradicionais.
Apresentaram-se para a sua eleição 53 mil candidatos e foram eleitos 545
deputados.
Destes, 364 elegeram-se nos
municípios. Outros 181 constituintes foram escolhidos por categoria
profissional, como trabalhadores, comunas e conselhos comunais, pescadores,
estudantes, aposentados, pessoas com deficiência e povos indígenas.
Os representantes de categorias,
para se candidatarem, tiveram que apresentar 500 assinaturas de apoio, enquanto
os que desejavam representar estudantes e trabalhadores tinham que apresentar
mil assinaturas.
Todos foram eleitos por voto
secreto, à excepção dos representantes dos Conselhos Comunais, que foram
eleitos regionalmente, e dos indígenas que foram escolhidos a partir das suas
tradições seculares.
Enfim, a Constituinte reúne os
representantes eleitos pelos seus municípios e representantes de categorias
profissionais, comunais, empresários e indígenas. Um retrato mais abrangente da
sociedade venezuelana do que nas eleições tradicionais.
A Constituinte está prevista nos
artigos 347º, 348º e 349º da Constituição em vigor.
A Venezuela tem importantes desafios pela frente, segundo os seus
dirigentes.
Desde logo a reanimação da
economia face à guerra económica.
Mas também, garantir a
regularização do abastecimento de alimentos e medicamentos.
Terá que continuar a aprofundar a
democracia participativa e o seu real protagonismo.
É necessário garantir para o
ambiente de paz e tranquilidade para realizar isso tudo, garantir a paz
negociada com a oposição, atendendo à disponibilidade de cooperação desta e a
uma sociedade muito dividida com os bloqueios que isso coloca a medidas de
defesa da revolução.
Impõe-se combater sem tréguas a
corrupção.
O Estado deverá ter que passar a
ter outra intervenção no comércio externo e na centralização das importações e
fiscalização do seu fluxo para o comércio interno de maneira a evitar o seu
desvio para o mercado negro e as faltas de abastecimento.
(1) Mesa de Unidad Democratica, instância onde se têm reunido vários
movimentos de oposição.
(2) O mais importante filósofo marxista da América Latina (1894-1930).