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sábado, 29 de abril de 2017

Bom fim de semana, por Jorge

"Il vecchio mondo sta morendo. Quello nuovo tarda a comparire.
E in questo chiaroscuro nascono i mostri."

"O velho mundo está a morrer. O novo tarda a aparecer.
E neste claro-escuro nascem os monstros."

Antonio Gramsci
fundador do Partido Comunista de Itália,
1891-1937
nos Quaderni del Carcere (1929-1935)

Quando Portugal ardeu

Entrevista com Miguel Carvalho

 

Por Nuno Ramos de Almeida

 

Vivemos em democracia, mas também vivemos numa mentira. A nossa memória histórica foi amputada de muito do que se passou. O jornalista Miguel Carvalho escreve um livro, Quando Portugal ardeu [1] , em que se resgata parte da história de Portugal. Nestas quase 600 páginas ficamos a saber que nos venderam um conto de fadas em que os maus vermelhos e totalitários foram derrotados por um grupo de pacíficos democratas impolutos e respeitadores da liberdade. Por baixo do tapete ficaram escondidos anos de terror e mais de 560 ataques da "rede bombista", que aterrorizaram os militantes pró-revolução e mataram muita gente.


Depois de escrever este livro, acha que vai ter problemas? 


(Risos) Confesso que tenho pensado bastante nisso, pelo seguinte: uma das pessoas com quem eu tentei falar para este livro foi Ramiro Moreira. Recusou. Eu não fiz o contacto direto com ele, usei uma cunha de uma pessoa muito próxima dele, e ele, quando ouviu falar do meu nome, disse: "Eu não falo com esse filho da puta." Ele tinha-me processado há uns anos por causa do Apito Dourado, por eu ter referido num texto as suas ligações ao Valentim Loureiro. E processou-me, não por eu ter feito referência a esse negócio, mas por lhe ter chamado bombista. Obviamente, acedi a muita documentação sobre ele, cartas pessoais e elementos dos processos, mas queria falar com ele.


Acedeu à gravação da sua confissão?


Sim, já a conhecia, o Diário de Lisboa publicou-a na altura e agora ouvi-a. Tem havido uns zunzuns de pessoas que já leram o livro, dos vários lados da barricada, que me têm telefonado a dizer: "Eh pá, se calhar, na sessão de apresentação é melhor ter cuidado", mas confesso que não tenho levado muito a sério.


Esses operacionais da altura já devem estar velhinhos e com alguma dificuldade de locomoção, mas há um conjunto de interesses ligados à "rede bombista" que são revelados e postos a nu no seu livro.


Há uma série de coisas que nunca tinham sido reveladas. Para este nível de pormenor que o livro revela contribui o facto de muita gente ter falado, passado mais de 40 anos, e a muita documentação consultada. As recusas de gente para falar para o livro mostraram-me que o assunto ainda está quente. Tive três tipos de recusas: a primeira foi do género de contactar o advogado x ou a figura y, pessoa que esteve bastante envolvida a nível processual no julgamento da "rede bombista" e que agora diz que não lhe convém nada, porque é advogado de empresas conhecidas, ser lembrado como advogado das forças de esquerda. Segundo tipo de recusa, mais expectável, é do género: "Eh pá, não me meta nisso porque os meus filhos estudam na universidade z, não sabem o que o pai fez e não quero ser associado a isso." E a terceira recusa, que vai ao encontro da sua pergunta: "Não me meta nisso porque isto foi no século passado, mas não foi assim há tanto tempo, em termos temporais foi ontem, e ainda há muita gente que sabe fazer as bombas, portanto deixe-me em paz." 


Uma coisa que se percebe no seu livro é que, para além de Joaquim Ferreira Torres [empresário ligado à rede que foi morto a tiro quando seguia ao volante do seu Porsche vermelho, em 21 de agosto de 1979], se percebe que ao longo dos anos houve bastante gente que desapareceu de forma misteriosa.


Nomeadamente, alguns operacionais da FLAMA [movimento independentista de extrema-direita da Madeira] que apareceram, como eles gostam de dizer, "suicidados", e o Ferreira Torres, de que fala. Este é um caso que ficou sem conclusão, apesar de, na fase final da investigação, com os cacos deixados por investigações policiais anteriores direcionadas para que nada se soubesse, se terem conseguido algumas pistas. Na parte do livro sobre o ex-coronel Ferreira da Silva [que dirigiu as investigações à "rede bombista"], ele relata uma conversa que teve com um elemento do esquadrão Chipenda [grupo ligado à FNLA - Frente Nacional de Libertação de Angola, que estava em guerra com o MPLA e, em Portugal, associou-se a atos de violência da extrema-direita e da "rede bombista"] que lhe diz, numa boate, que foram eles que mataram o Ferreira Torres por uma questão de dinheiros.


Ele também interpreta como uma ameaça a abordagem, salvo erro no Tamila, de quem diz: "Sabemos quem tu és e sabemos como te encontrar."

As duas coisas. Ele sabe que é isso, mas também dá crédito à informação. Fica convicto de que lhe estão a contar a verdade, fruto das várias histórias que sabia e investigou. Ele meteu a mão na massa e sabia bem o que tinha um fundo de verdade. Aquilo também foi uma forma de o avisar e de lhe dizer: "Aquilo foi tão perfeito, já sabe o que lhe pode acontecer." Eu consultei o processo Ferreira Torres e muita papelada ligada à matéria, e nunca vi nesses documentos uma afirmação tão direta sobre o motivo eventual do crime. Insinua-se em muitos lugares sobre os negócios e o dinheiro que teria ido para a "rede bombista" à sombra do MDLP [Movimento Democrático de Libertação de Portugal, juntamente com o ELP - Exército de Libertação de Portugal, a principal organização política da rede, dirigida pelo, na altura, general no exílio António de Spínola]. Mas nunca se fala claramente, nessa conversa, sobre as fortunas que ajudou a passar para Espanha e os valores e negociatas à sombra da organização terrorista. Com tudo isso, não é difícil de imaginar que esse elemento do esquadrão Chipenda estivesse a falar verdade quando confessou que Joaquim Ferreira Torres tinha sido morto por causa de "negócios mal resolvidos".

 

Uma das coisas que não são totalmente novidade, porque já era revelada no livro "A Descoberta de Uma Conspiração", do jornalista Günter Wallraff [2] , é a promiscuidade entre os "democratas" do atual regime e os bombistas: eles eram uma espécie de plano B dos "democratas". 


É precisamente este lado sombrio da história que é importante. Embora eu tenha consciência de que não é este livro que o consegue revelar. Eu tenho um ponto de vista e não abdico dele: quero provar, sem nenhum tipo de ajuste de contas, que a narrativa oficial diz que estivemos à beira de uma ditadura de esquerda quando estivemos muito mais próximos de um golpe de extrema-direita. A direita não foi tão ordeira e civilizada como hoje nos querem fazer crer.

Há muito mais gente assassinada pela "rede bombista" do que pelas FP25.

Estamos cansados de ouvir que o 25 de Novembro foi o princípio da "normalidade democrática" quando os atentados mais mortais da "rede bombista" foram depois dessa data e já corria o ano de 1976. Ninguém dá resposta para isso. A única coisa que nos pode valer é a confissão do Ramiro Moreira, em agosto de 1976, em que ele diz para um gravador: "Interessava que continuasse a haver bombinhas." Porque havia uma série de frustrados com a independência de Angola e porque os comunistas continuavam a existir. Duas das coisas que essa gente assumiu como os objetivos do seu combate, impedir a independência de Angola e liquidar os comunistas, não tinham acontecido.

Não era também uma espécie de chantagem das almas negras para os novos donos do poder e seus anteriores cúmplices?


Onde quer chegar?


Há setores do CDS, PSD e até PS que aparecem, no seu livro, a colaborar e a apoiar a "rede bombista". Coloca no seu livro um chefe da segurança do PS, preso por causa das chamadas armas de Edmundo Pedro [armas dadas pela direita militar e o Grupo dos Nove ao PS] a dizer na cadeia ao Ramiro Moreira: "Cala-te senão ainda apareces morto."


Eu não sou ingénuo, mas confesso que o grau de envolvimento de setores do PS com a "rede bombista" é muito maior que eu imaginava.


Setores ou implica a própria direção?


Há zonas do país em que as diretrizes do PS não são seguidas. Se, em Braga, o dirigente da distrital do PS é um dos grandes organizadores da manifestação da Igreja [que acaba com o assalto e incêndio da sede do PCP], há outras pessoas, como um dirigente do PS de Viana do Castelo, que se recusam a cumpri-las. Esse dirigente demite-se porque não quer obedecer a uma ordem do Largo do Rato sobre um envio de armas.


No seu livro até há um bombista a dizer que colocou um petardo na sede do PS do Largo do Rato, no dia do debate televisivo com o Cunhal, a mando do próprio Partido Socialista, para se vitimar. E quem acaba por indultar o Ramiro Moreira não foi o Eanes.


Pois não. Foi o Soares. O próprio julgamento da "rede bombista", a própria forma como o julgamento terminou deve muito às manobras do governo PS da altura. Não me custa nada fazer minhas as palavras do advogado Levy Baptista de que o julgamento da "rede bombista" foi uma farsa. Aquilo ter ido para o fórum militar foi uma forma de condicionar uma data de coisas; o papel de Almeida Santos nesse assunto está por esclarecer; o próprio papel de Mário Soares não é claro. Relembro que, depois dos acontecimentos em Rio Maior [manifestação, a 13 de julho de 1975, que culminou em assaltos às sedes do PCP e FSP], Soares faz um comício em Rio Maior em que diz, "Era bom que este exemplo fosse seguido em várias zonas do país", e a Igreja aproveita logo as declarações em várias dioceses. Uma coisa espantosa, mesmo conhecendo bem a documentação desse período, são as coleções do Diário do Minho [jornal de propriedade da Igreja], que quase chegam a ser uma espécie de Ação Socialista daquele período: abundam fotos e elogios ao Mário Soares.

Outra coisa impressionante no seu livro é a dimensão de guerra suja, com operações de provocação que podiam ter custado centenas de vidas, como da vez em que pediram a Ramiro Moreira para colocar 100 quilos de explosivos no Santuário de Fátima para depois acusarem os comunistas do massacre.


Não tenho dúvidas de que é verdade. Acho que quando o Ramiro Moreira é genuíno é quando foi ouvido, poucas horas depois de ser detido, não é quando em 1991 é indultado e reescreve a história, e diz que têm de lhe erguer uma estátua porque ele lutou pela democracia. Ele é verdadeiro quando está assustado e está convencido de que, "abrindo o livro", pode ser salvo.


É muito curioso o facto de ter sido o próprio Sá Carneiro, de quem Ramiro Moreira tinha sido guarda-costas, a expulsá-lo do PSD, dizendo: "Eu não posso ter um bombista no partido".


Francisco Sá Carneiro não era um líder político como os de hoje, que são completamente viciados no aparelho.

 

Soares também não era viciado no aparelho e tinha um historial impressionante...

Havia uma diferença entre os dois na forma como ligavam com a estrumeira dos respetivos aparelhos. Sá Carneiro, quando começa a saber do envolvimento de certas figuras do PSD, nomeadamente Ramiro Moreira, que não era só segurança, era militante número 7 do partido, tinha feito parte da comissão política distrital do Porto, tinha sido levado ao colo por Mota Freitas, essa figura altamente protegida pelos militares... Quando Sá Carneiro chama Ramiro Moreira a casa e lhe diz, "Meu amigo, ou entregas o cartão ou és expulso", isso é uma tentativa, admito que já desesperada, de que o partido não resvale par aí. Podemos discutir se o conseguiu ou não, até porque o PPD aparece envolvido em muita coisa. Já os militantes do CDS aparecem bastante envolvidos, são eles que fazem grande parte das ligações, em algumas regiões, da Igreja com a "rede bombista". Basílio Horta chega a reunir com os responsáveis da Igreja, que lhe dizem o que estão a fazer. Claro que ele, depois, diz que não alimentaram isso, mas ele sabia o que estava a ser preparado. Espantoso, para mim, é o grau de envolvimento dos setores do PS nisso. O que me leva a tirar a conclusão de que não sou o primeiro a tirá-la o Partido Socialista se aliou a tudo para combater o PCP.


Os contactos de Günter Wallraff, a fingir de traficante de armas, com Spínola para armar um golpe de Estado de extrema-direita são posteriores ao 25 de Novembro? 

 

São anteriores. Quando Wallraff vem a Portugal, ainda os Corrécios [bando liderado por Eduardo Oliveira que cometia grande parte das agressões e atentados contra militantes de esquerda na zona de Braga] estavam em liberdade.

Aliás, o primeiro contacto que Günter Wallraff diz ter com alguém da "rede bombista" é uma conversa que tem, por acaso, com um homem com um cão que é o próprio líder dos Corrécios.


Alguns pormenores do livro do jornalista alemão podem ter sido romanceados mas, no geral, ele é rigoroso. Na altura, o semanário O Jornal foi conferir os dados do livro e concluiu que eram verdadeiros. Há vários elementos do ELP e do MDLP que vêm confirmar que o livro acertava em cheio. Quando me perguntam como era possível os bombistas, como os Corrécios, irem gabar-se dos seus atos para os cafés, eu respondo: muito facilmente, grande parte do país era anticomunista e era fácil fazê-lo sem nenhuma consequência.


Um dado desconhecido pela maior parte das pessoas é a cumplicidade de membros do Conselho da Revolução com a "rede bombista".

 

Tanto o Canto e Castro como o Vítor Alves sabiam o que estava a acontecer e quem eram as pessoas que estavam por detrás dessas ações. O Vítor Alves "aterrou" várias vezes em casa do Joaquim Ferreira Torres. Aliás, há um frase do Joaquim Ferreira Torres, quando o vê na televisão, que diz: "Este filho da puta veio tantas vezes jantar a minha casa e comer o meu fumeiro e, afinal, não fez nada do que se comprometeu." Para além de tudo isso, está também por esclarecer o papel de Ramalho Eanes em tudo isto.

 

Mas ele parece ter infletido uma eventual cumplicidade. O grau de ódio que Ramiro Moreira manifesta contra Eanes é um pouco indicador disso. Até no seu livro, o coronel Ferreira da Silva fala elogiosamente do grau de distanciamento que Eanes teve com as investigações quando era Presidente.

Mas o grau de compromisso dele com tudo o que ardia é muito maior do que se pensa. Lê-se em vários documentos e em depoimentos de várias pessoas que há muita gente que suspeita do seu envolvimento. O próprio Álvaro Guimarães, diretor da Polícia Judiciária do Porto, afirma que um dos objetivos do Eanes foi colocar um espião na PJ para controlar os movimentos da Judiciária e saber o que a investigação sabia.

 

... Lencastre Bernardo.

 

Sim.

Não falou com Ramalho Eanes?

 

Não, e confesso que não tentei. O objetivo do livro era sobretudo ouvir uma data de gente que, apesar de não ser conhecida, tem mais coisas a dar. Quando eu digo que não acho que haja um esclarecimento total do seu envolvimento naquele período, não penso que fosse conversando com ele que isso se conseguiria apurar. Acho que seria mais importante ouvir pessoas que estiveram com as mãos na massa, investigaram e produziram muita documentação.

Mas o seu livro acaba por ficar na mesma situação em que ficaram as investigações judiciais: os executantes da arraia miúda foram apanhados e logo libertados, os mandantes foram falados mas permaneceram intocados, e quem politicamente estava por detrás nunca foi incomodado.

 

Essa situação resulta de uma estratégia intencional por parte do poder. Para conseguir que as coisas não se saibam. Quando eu, para fazer este livro, me deparo com a proibição de aceder a alguns arquivos, isso tem o objetivo de conseguir que muita coisa fique escondida. Assiste-se a uma privatização da memória pública. Tudo isso é feito dentro da lei, mas se eu quero consultar o processo de Eduardo Corrécio, que foi condenado a dois anos e meio de prisão por posse de armas – e tudo o que foi dito naquele julgamento é importante para perceber o grau de cumplicidade daquele gangue com aqueles movimentos e os responsáveis políticos –, esse processo é-me negado com o argumento de que ou é autorizado por ele ou, caso ele tenha morrido, a família tem de autorizar. De modo que espero sentado.

 

Isso é legal, o processo não tem de ser público?

 

Eu acho que sim, mas está protegido. Como está protegido o depoimento prestado por Ramiro Moreira a uma das comissões ao acidente/atentado de Camarate. O depoente só aceitou fazer o depoimento quando lhe garantiram que nunca seria tornado público. Se pedir à Assembleia da República, a resposta que lhe vão dar é que o Ramiro tem de autorizar. Aliás, há muitas atas dessa comissão que são impossíveis de conseguir. Isto é tudo formalmente legal. Mas, para mim, isso é uma privatização da memória pública. Legitima que se possa pensar que isto não é por acaso: se calhar, sabendo-se tudo sobre a "rede bombista", algumas biografias vão ficar desfocadas. 

 

Já teve algumas reações?

 

Há muitas. Gente que leu e ficou impressionada com o grau de envolvimento de parte dos políticos nestes acontecimentos, mas ameaças e outras coisas não me têm feito chegar.

 

Bastante mais calmo do que seria há alguns anos. Conseguiu falar com os Corrécios?

 

Mais uma vez, houve a possibilidade de falar com o Eduardo Corrécio, mas eu obtive muita documentação sobre o processo e sobre as investigações, e não insisti porque, mais uma vez, não tinha qualquer garantia da fiabilidade dos depoimentos que conseguisse obter. Confio mais naquilo que foi dito na época do que na reescrita que fizeram depois. O Ramiro Moreira é um bom exemplo disso: eu li todas as entrevistas que ele deu, li muita documentação, cartas pessoais, coisas que nunca vieram a público, elementos do processo, e isso é bastante mais fiável do que a reescrita que ele faz da história e da sua participação nesses acontecimentos que fez nas suas últimas entrevistas.

E o Ramiro Moreira terá lido o livro? 

 

A única coisa é que o Ramiro Moreira ligou a um camarada de profissão que escreveu sobre o livro, dizendo, indignado, como é que essas coisas serão lembradas. Terá dito que não fez só coisas boas, mas porquê só lembrar coisas desse período. Não passou disso. O próprio depoimento do José Silva Santos no livro é um pouco exemplo deste estado de espírito: um homem que, no âmbito daquele processo, desmente tudo aquilo de que o acusam e, 40 anos depois, confirma tudo: "Sim, o carro foi armadilhado aqui, eu até fiz a ponte com a Igreja."

Agora, há outros, como o cônsul dos EUA no Porto, que, pelo seu depoimento, ficamos a saber que ele só organizava chás e sessões de relações públicas, e que nunca viu um espião da CIA...

O homem que está no centro do furacão e que garante que a sua vida não passava de jogar golfe. Mas é importante o seu depoimento estar aí. É o relato de alguém que tenta reescrever o sucedido, como quando ele diz que isto tudo não passou de uns tipos a baterem com o guarda-chuva na cabeça uns dos outros.

12/Abril/2017

[1] Miguel Carvalho, Quando Portugal ardeu , Oficina do Livro, 2017, 560 p., ISBN: 9789897416675
[2] Günter Wallraff, 
A descoberta de uma conspiração , Bertrand, 1976, 242 p.

O original encontra-se em
ionline.sapo.pt/558127

sexta-feira, 21 de abril de 2017

Bom fim de semana!, por Jorge

"Cui prodest?"

"A quem aproveita?"

Expressão latina
ainda em uso corrente na investigação criminal,
sugerindo que a parte responsável por determinada
ação estará entre os que dela tiram proveito.

quinta-feira, 20 de abril de 2017

"Quando Portugal ardeu", entrevista ao autor, Miguel Carvalho, por Nuno Ramos de Almeida


Vivemos em democracia, mas também vivemos numa mentira. A nossa memória histórica foi amputada de muito do que se passou. O jornalista Miguel Carvalho escreve um livro, Quando Portugal ardeu [1] , em que se resgata parte da história de Portugal. Nestas quase 600 páginas ficamos a saber que nos venderam um conto de fadas em que os maus vermelhos e totalitários foram derrotados por um grupo de pacíficos democratas impolutos e respeitadores da liberdade. Por baixo do tapete ficaram escondidos anos de terror e mais de 560 ataques da "rede bombista", que aterrorizaram os militantes pró-revolução e mataram muita gente.

Depois de escrever este livro, acha que vai ter problemas? 

(Risos) Confesso que tenho pensado bastante nisso, pelo seguinte: uma das pessoas com quem eu tentei falar para este livro foi Ramiro Moreira. Recusou. Eu não fiz o contacto direto com ele, usei uma cunha de uma pessoa muito próxima dele, e ele, quando ouviu falar do meu nome, disse: "Eu não falo com esse filho da puta." Ele tinha-me processado há uns anos por causa do Apito Dourado, por eu ter referido num texto as suas ligações ao Valentim Loureiro. E processou-me, não por eu ter feito referência a esse negócio, mas por lhe ter chamado bombista. Obviamente, acedi a muita documentação sobre ele, cartas pessoais e elementos dos processos, mas queria falar com ele.

Acedeu à gravação da sua confissão?

Sim, já a conhecia, o Diário de Lisboa publicou-a na altura e agora ouvi-a. Tem havido uns zunzuns de pessoas que já leram o livro, dos vários lados da barricada, que me têm telefonado a dizer: "Eh pá, se calhar, na sessão de apresentação é melhor ter cuidado", mas confesso que não tenho levado muito a sério.

Esses operacionais da altura já devem estar velhinhos e com alguma dificuldade de locomoção, mas há um conjunto de interesses ligados à "rede bombista" que são revelados e postos a nu no seu livro.

Há uma série de coisas que nunca tinham sido reveladas. Para este nível de pormenor que o livro revela contribui o facto de muita gente ter falado, passado mais de 40 anos, e a muita documentação consultada. As recusas de gente para falar para o livro mostraram-me que o assunto ainda está quente. Tive três tipos de recusas: a primeira foi do género de contactar o advogado x ou a figura y, pessoa que esteve bastante envolvida a nível processual no julgamento da "rede bombista" e que agora diz que não lhe convém nada, porque é advogado de empresas conhecidas, ser lembrado como advogado das forças de esquerda. Segundo tipo de recusa, mais expectável, é do género: "Eh pá, não me meta nisso porque os meus filhos estudam na universidade z, não sabem o que o pai fez e não quero ser associado a isso." E a terceira recusa, que vai ao encontro da sua pergunta: "Não me meta nisso porque isto foi no século passado, mas não foi assim há tanto tempo, em termos temporais foi ontem, e ainda há muita gente que sabe fazer as bombas, portanto deixe-me em paz." 

Uma coisa que se percebe no seu livro é que, para além de Joaquim Ferreira Torres [empresário ligado à rede que foi morto a tiro quando seguia ao volante do seu Porsche vermelho, em 21 de agosto de 1979], se percebe que ao longo dos anos houve bastante gente que desapareceu de forma misteriosa.

Nomeadamente, alguns operacionais da FLAMA [movimento independentista de extrema-direita da Madeira] que apareceram, como eles gostam de dizer, "suicidados", e o Ferreira Torres, de que fala. Este é um caso que ficou sem conclusão, apesar de, na fase final da investigação, com os cacos deixados por investigações policiais anteriores direcionadas para que nada se soubesse, se terem conseguido algumas pistas. Na parte do livro sobre o ex-coronel Ferreira da Silva [que dirigiu as investigações à "rede bombista"], ele relata uma conversa que teve com um elemento do esquadrão Chipenda [grupo ligado à FNLA - Frente Nacional de Libertação de Angola, que estava em guerra com o MPLA e, em Portugal, associou-se a atos de violência da extrema-direita e da "rede bombista"] que lhe diz, numa boate, que foram eles que mataram o Ferreira Torres por uma questão de dinheiros.

Ele também interpreta como uma ameaça a abordagem, salvo erro no Tamila, de quem diz: "Sabemos quem tu és e sabemos como te encontrar."

As duas coisas. Ele sabe que é isso, mas também dá crédito à informação. Fica convicto de que lhe estão a contar a verdade, fruto das várias histórias que sabia e investigou. Ele meteu a mão na massa e sabia bem o que tinha um fundo de verdade. Aquilo também foi uma forma de o avisar e de lhe dizer: "Aquilo foi tão perfeito, já sabe o que lhe pode acontecer." Eu consultei o processo Ferreira Torres e muita papelada ligada à matéria, e nunca vi nesses documentos uma afirmação tão direta sobre o motivo eventual do crime. Insinua-se em muitos lugares sobre os negócios e o dinheiro que teria ido para a "rede bombista" à sombra do MDLP [Movimento Democrático de Libertação de Portugal, juntamente com o ELP - Exército de Libertação de Portugal, a principal organização política da rede, dirigida pelo, na altura, general no exílio António de Spínola]. Mas nunca se fala claramente, nessa conversa, sobre as fortunas que ajudou a passar para Espanha e os valores e negociatas à sombra da organização terrorista. Com tudo isso, não é difícil de imaginar que esse elemento do esquadrão Chipenda estivesse a falar verdade quando confessou que Joaquim Ferreira Torres tinha sido morto por causa de "negócios mal resolvidos".

Uma das coisas que não são totalmente novidade, porque já era revelada no livro "A Descoberta de Uma Conspiração", do jornalista Günter Wallraff [2] , é a promiscuidade entre os "democratas" do atual regime e os bombistas: eles eram uma espécie de plano B dos "democratas". 

É precisamente este lado sombrio da história que é importante. Embora eu tenha consciência de que não é este livro que o consegue revelar. Eu tenho um ponto de vista e não abdico dele: quero provar, sem nenhum tipo de ajuste de contas, que a narrativa oficial diz que estivemos à beira de uma ditadura de esquerda quando estivemos muito mais próximos de um golpe de extrema-direita. A direita não foi tão ordeira e civilizada como hoje nos querem fazer crer.

Há muito mais gente assassinada pela "rede bombista" do que pelas FP25.

Estamos cansados de ouvir que o 25 de Novembro foi o princípio da "normalidade democrática" quando os atentados mais mortais da "rede bombista" foram depois dessa data e já corria o ano de 1976. Ninguém dá resposta para isso. A única coisa que nos pode valer é a confissão do Ramiro Moreira, em agosto de 1976, em que ele diz para um gravador: "Interessava que continuasse a haver bombinhas." Porque havia uma série de frustrados com a independência de Angola e porque os comunistas continuavam a existir. Duas das coisas que essa gente assumiu como os objetivos do seu combate, impedir a independência de Angola e liquidar os comunistas, não tinham acontecido.

Não era também uma espécie de chantagem das almas negras para os novos donos do poder e seus anteriores cúmplices?

Onde quer chegar?

Há setores do CDS, PSD e até PS que aparecem, no seu livro, a colaborar e a apoiar a "rede bombista". Coloca no seu livro um chefe da segurança do PS, preso por causa das chamadas armas de Edmundo Pedro [armas dadas pela direita militar e o Grupo dos Nove ao PS] a dizer na cadeia ao Ramiro Moreira: "Cala-te senão ainda apareces morto."

Eu não sou ingénuo, mas confesso que o grau de envolvimento de setores do PS com a "rede bombista" é muito maior que eu imaginava.

Setores ou implica a própria direção?

Há zonas do país em que as diretrizes do PS não são seguidas. Se, em Braga, o dirigente da distrital do PS é um dos grandes organizadores da manifestação da Igreja [que acaba com o assalto e incêndio da sede do PCP], há outras pessoas, como um dirigente do PS de Viana do Castelo, que se recusam a cumpri-las. Esse dirigente demite-se porque não quer obedecer a uma ordem do Largo do Rato sobre um envio de armas.

No seu livro até há um bombista a dizer que colocou um petardo na sede do PS do Largo do Rato, no dia do debate televisivo com o Cunhal, a mando do próprio Partido Socialista, para se vitimar. E quem acaba por indultar o Ramiro Moreira não foi o Eanes.

Pois não. Foi o Soares. O próprio julgamento da "rede bombista", a própria forma como o julgamento terminou deve muito às manobras do governo PS da altura. Não me custa nada fazer minhas as palavras do advogado Levy Baptista de que o julgamento da "rede bombista" foi uma farsa. Aquilo ter ido para o fórum militar foi uma forma de condicionar uma data de coisas; o papel de Almeida Santos nesse assunto está por esclarecer; o próprio papel de Mário Soares não é claro. Relembro que, depois dos acontecimentos em Rio Maior [manifestação, a 13 de julho de 1975, que culminou em assaltos às sedes do PCP e FSP], Soares faz um comício em Rio Maior em que diz, "Era bom que este exemplo fosse seguido em várias zonas do país", e a Igreja aproveita logo as declarações em várias dioceses. Uma coisa espantosa, mesmo conhecendo bem a documentação desse período, são as coleções do Diário do Minho [jornal de propriedade da Igreja], que quase chegam a ser uma espécie de Ação Socialista daquele período: abundam fotos e elogios ao Mário Soares.

Outra coisa impressionante no seu livro é a dimensão de guerra suja, com operações de provocação que podiam ter custado centenas de vidas, como da vez em que pediram a Ramiro Moreira para colocar 100 quilos de explosivos no Santuário de Fátima para depois acusarem os comunistas do massacre.

Não tenho dúvidas de que é verdade. Acho que quando o Ramiro Moreira é genuíno é quando foi ouvido, poucas horas depois de ser detido, não é quando em 1991 é indultado e reescreve a história, e diz que têm de lhe erguer uma estátua porque ele lutou pela democracia. Ele é verdadeiro quando está assustado e está convencido de que, "abrindo o livro", pode ser salvo.

É muito curioso o facto de ter sido o próprio Sá Carneiro, de quem Ramiro Moreira tinha sido guarda-costas, a expulsá-lo do PSD, dizendo: "Eu não posso ter um bombista no partido".

Francisco Sá Carneiro não era um líder político como os de hoje, que são completamente viciados no aparelho.

 Soares também não era viciado no aparelho e tinha um historial impressionante...

Havia uma diferença entre os dois na forma como ligavam com a estrumeira dos respetivos aparelhos. Sá Carneiro, quando começa a saber do envolvimento de certas figuras do PSD, nomeadamente Ramiro Moreira, que não era só segurança, era militante número 7 do partido, tinha feito parte da comissão política distrital do Porto, tinha sido levado ao colo por Mota Freitas, essa figura altamente protegida pelos militares... Quando Sá Carneiro chama Ramiro Moreira a casa e lhe diz, "Meu amigo, ou entregas o cartão ou és expulso", isso é uma tentativa, admito que já desesperada, de que o partido não resvale par aí. Podemos discutir se o conseguiu ou não, até porque o PPD aparece envolvido em muita coisa. Já os militantes do CDS aparecem bastante envolvidos, são eles que fazem grande parte das ligações, em algumas regiões, da Igreja com a "rede bombista". Basílio Horta chega a reunir com os responsáveis da Igreja, que lhe dizem o que estão a fazer. Claro que ele, depois, diz que não alimentaram isso, mas ele sabia o que estava a ser preparado. Espantoso, para mim, é o grau de envolvimento dos setores do PS nisso. O que me leva a tirar a conclusão de que não sou o primeiro a tirá-la o Partido Socialista se aliou a tudo para combater o PCP.

s contactos de Günter Wallraff, a fingir de traficante de armas, com Spínola para armar um golpe de Estado de extrema-direita são posteriores ao 25 de Novembro? 

 São anteriores. Quando Wallraff vem a Portugal, ainda os Corrécios [bando liderado por Eduardo Oliveira que cometia grande parte das agressões e atentados contra militantes de esquerda na zona de Braga] estavam em liberdade.

Aliás, o primeiro contacto que Günter Wallraff diz ter com alguém da "rede bombista" é uma conversa que tem, por acaso, com um homem com um cão que é o próprio líder dos Corrécios.

Alguns pormenores do livro do jornalista alemão podem ter sido romanceados mas, no geral, ele é rigoroso. Na altura, o semanário O Jornal foi conferir os dados do livro e concluiu que eram verdadeiros. Há vários elementos do ELP e do MDLP que vêm confirmar que o livro acertava em cheio. Quando me perguntam como era possível os bombistas, como os Corrécios, irem gabar-se dos seus atos para os cafés, eu respondo: muito facilmente, grande parte do país era anticomunista e era fácil fazê-lo sem nenhuma consequência.

Um dado desconhecido pela maior parte das pessoas é a cumplicidade de membros do Conselho da Revolução com a "rede bombista".

Tanto o Canto e Castro como o Vítor Alves sabiam o que estava a acontecer e quem eram as pessoas que estavam por detrás dessas ações. O Vítor Alves "aterrou" várias vezes em casa do Joaquim Ferreira Torres. Aliás, há um frase do Joaquim Ferreira Torres, quando o vê na televisão, que diz: "Este filho da puta veio tantas vezes jantar a minha casa e comer o meu fumeiro e, afinal, não fez nada do que se comprometeu." Para além de tudo isso, está também por esclarecer o papel de Ramalho Eanes em tudo isto.

 Mas ele parece ter infletido uma eventual cumplicidade. O grau de ódio que Ramiro Moreira manifesta contra Eanes é um pouco indicador disso. Até no seu livro, o coronel Ferreira da Silva fala elogiosamente do grau de distanciamento que Eanes teve com as investigações quando era Presidente.

Mas o grau de compromisso dele com tudo o que ardia é muito maior do que se pensa. Lê-se em vários documentos e em depoimentos de várias pessoas que há muita gente que suspeita do seu envolvimento. O próprio Álvaro Guimarães, diretor da Polícia Judiciária do Porto, afirma que um dos objetivos do Eanes foi colocar um espião na PJ para controlar os movimentos da Judiciária e saber o que a investigação sabia.

 ... Lencastre Bernardo.

 Sim.

Não falou com Ramalho Eanes?

Não, e confesso que não tentei. O objetivo do livro era sobretudo ouvir uma data de gente que, apesar de não ser conhecida, tem mais coisas a dar. Quando eu digo que não acho que haja um esclarecimento total do seu envolvimento naquele período, não penso que fosse conversando com ele que isso se conseguiria apurar. Acho que seria mais importante ouvir pessoas que estiveram com as mãos na massa, investigaram e produziram muita documentação.

Mas o seu livro acaba por ficar na mesma situação em que ficaram as investigações judiciais: os executantes da arraia miúda foram apanhados e logo libertados, os mandantes foram falados mas permaneceram intocados, e quem politicamente estava por detrás nunca foi incomodado.

 Essa situação resulta de uma estratégia intencional por parte do poder. Para conseguir que as coisas não se saibam. Quando eu, para fazer este livro, me deparo com a proibição de aceder a alguns arquivos, isso tem o objetivo de conseguir que muita coisa fique escondida. Assiste-se a uma privatização da memória pública. Tudo isso é feito dentro da lei, mas se eu quero consultar o processo de Eduardo Corrécio, que foi condenado a dois anos e meio de prisão por posse de armas – e tudo o que foi dito naquele julgamento é importante para perceber o grau de cumplicidade daquele gangue com aqueles movimentos e os responsáveis políticos –, esse processo é-me negado com o argumento de que ou é autorizado por ele ou, caso ele tenha morrido, a família tem de autorizar. De modo que espero sentado.

Isso é legal, o processo não tem de ser público?

Eu acho que sim, mas está protegido. Como está protegido o depoimento prestado por Ramiro Moreira a uma das comissões ao acidente/atentado de Camarate. O depoente só aceitou fazer o depoimento quando lhe garantiram que nunca seria tornado público. Se pedir à Assembleia da República, a resposta que lhe vão dar é que o Ramiro tem de autorizar. Aliás, há muitas atas dessa comissão que são impossíveis de conseguir. Isto é tudo formalmente legal. Mas, para mim, isso é uma privatização da memória pública. Legitima que se possa pensar que isto não é por acaso: se calhar, sabendo-se tudo sobre a "rede bombista", algumas biografias vão ficar desfocadas. 

 Já teve algumas reações?

 Há muitas. Gente que leu e ficou impressionada com o grau de envolvimento de parte dos políticos nestes acontecimentos, mas ameaças e outras coisas não me têm feito chegar.

 Bastante mais calmo do que seria há alguns anos. Conseguiu falar com os Corrécios?

 Mais uma vez, houve a possibilidade de falar com o Eduardo Corrécio, mas eu obtive muita documentação sobre o processo e sobre as investigações, e não insisti porque, mais uma vez, não tinha qualquer garantia da fiabilidade dos depoimentos que conseguisse obter. Confio mais naquilo que foi dito na época do que na reescrita que fizeram depois. O Ramiro Moreira é um bom exemplo disso: eu li todas as entrevistas que ele deu, li muita documentação, cartas pessoais, coisas que nunca vieram a público, elementos do processo, e isso é bastante mais fiável do que a reescrita que ele faz da história e da sua participação nesses acontecimentos que fez nas suas últimas entrevistas.

E o Ramiro Moreira terá lido o livro? 

 A única coisa é que o Ramiro Moreira ligou a um camarada de profissão que escreveu sobre o livro, dizendo, indignado, como é que essas coisas serão lembradas. Terá dito que não fez só coisas boas, mas porquê só lembrar coisas desse período. Não passou disso. O próprio depoimento do José Silva Santos no livro é um pouco exemplo deste estado de espírito: um homem que, no âmbito daquele processo, desmente tudo aquilo de que o acusam e, 40 anos depois, confirma tudo: "Sim, o carro foi armadilhado aqui, eu até fiz a ponte com a Igreja."

Agora, há outros, como o cônsul dos EUA no Porto, que, pelo seu depoimento, ficamos a saber que ele só organizava chás e sessões de relações públicas, e que nunca viu um espião da CIA...

O homem que está no centro do furacão e que garante que a sua vida não passava de jogar golfe. Mas é importante o seu depoimento estar aí. É o relato de alguém que tenta reescrever o sucedido, como quando ele diz que isto tudo não passou de uns tipos a baterem com o guarda-chuva na cabeça uns dos outros.

12/Abril/2017

[1] Miguel Carvalho, Quando Portugal ardeu , Oficina do Livro, 2017, 560 p., ISBN: 9789897416675
[2] Günter Wallraff, 
A descoberta de uma conspiração , Bertrand, 1976, 242 p.

O original encontra-se em
ionline.sapo.pt/558127

domingo, 16 de abril de 2017

Coreia do Norte: a revelação da grande mentira, por Christopher Black*


Nota prévia do editor – para não truncar este texto escrito em 2013, chamo a atenção do leitor para que os aspectos da actualidade referidos são hoje outros, igualmente negativos, com a actual administração Trump, como se tem visto nestes dias e juntaram-se informações adicionais para melhor entendimento destas questões.

Em 2003, com alguns advogados americanos, membros da Associação Nacional de Advogados, tive a oportunidade de viajar na Coreia do Norte, isto é, na República Popular Democrática da Coreia (RPDC), a fim de ter uma experiência em primeira mão desse país, do seu governo socialista e do seu povo.

Publicado no nosso retorno, este artigo foi intitulado “A revelação da grande mentira”. O título foi escolhido porque descobrimos que o mito pejorativo da propaganda ocidental sobre a Coreia do Norte é um enorme embuste, concebido para esconder as realizações dos norte-coreanos, que conseguiram criar as suas próprias condições de desenvolvimento, o seu próprio sistema socioeconómico independente, baseado nos princípios do socialismo, livre do domínio das potências ocidentais.

Durante um dos nossos primeiros jantares em Pyongyang, o nosso anfitrião, Ri Myong Kuk, um advogado, disse em termos apaixonados, em nome do governo, que a força de dissuasão nuclear da RPDC é necessária dadas as ações e ameaças dos EUA e aliados contra o seu país. Ele disse-o, e foi-me repetido mais tarde durante a minha viagem, numa reunião de alto nível com representantes do governo da RPDC, que se os americanos assinassem um tratado de paz e um acordo de não-agressão com a RPDC, isso tornaria a ocupação ilegítima e levaria à reunificação da Coreia. Assim, não haveria mais necessidade de armas nucleares. Com sinceridade disse: “é importante que os advogados se reúnam para falar sobre isto, porque os advogados regulam as interações sociais no seio da sociedade e do mundo” e acrescentou que de boa-fé, “o caminho para a paz requer a abertura do coração”.

Pareceu-nos então, e é agora evidente, que, em absoluta contradição com o que dizem os meios de comunicação ocidentais, o povo da RPDC quer paz mais do que qualquer outra coisa. Ele quer continuar com as suas vidas e ocupações sem a ameaça constante de ser exterminado pelas armas atómicas dos EUA. Mas, na verdade, por que são ameaçados de serem exterminados e de quem é a culpa? Não é sua.

Mostraram-nos documentos dos EUA apreendidos durante a guerra da Coreia.

Tratam-se de provas irrefutáveis de que os EUA tinham planeado atacar a Coreia do Norte em 1950. O ataque foi realizado pelas forças armadas dos EUA e da Coreia do Sul, ajudadas por oficiais do exército japonês, que tinham invadido e ocupado a Coreia anteriormente, durante décadas. Os EUA pretenderam então que a defesa e o contra-ataque eram uma “agressão”, os média foram manipulados para incentivar as Nações Unidas a apoiar uma “operação policial”, eufemismo escolhido para descrever a sua guerra de agressão contra a Coreia do Norte. Daí  resultaram três anos de guerra e 3,5 milhões de vítimas coreanas.
Desde então, os EUA ameaçam com guerra iminente e aniquilação.
Em 1950, quando a Rússia não estava presente numa reunião do Conselho de Segurança, a votação das Nações Unidas a favor da “operação policial” foi ela própria ilegal. Ao abrigo dos regulamentos internos, o quorum no Conselho de Segurança exige a presença de todas as delegações membros. Todos os membros devem estar presentes, caso contrário não se pode realizar a sessão. Os americanos aproveitaram a ocasião de um boicote dos russos ao Conselho de Segurança, em defesa da República Popular da China, que deveria ter  o lugar à mesa do Conselho de Segurança e não o governo derrotado do Kuomintang. Como os americanos se recusaram a conceder esse direito, os
russos recusaram sentar-se à mesa até que o governo chinês legítimo o pudesse fazer.

Os americanos aproveitaram esta oportunidade para fazer uma espécie de golpe de estado nas Nações Unidas. Tomando o controlo dos seus mecanismos, utilizaram-nos para os seus próprios interesses. Organizaram-se com os britânicos, os franceses e os chineses do Kuomintang, para apoiar a guerra na Coreia, na ausência dos russos. Os aliados dos americanos, como estes  lhes tinham pedido, votaram a favor da guerra contra a Coreia, mas a votação foi inválida e a operação da polícia não foi uma operação de manutenção da paz, nem justificada pelo capítulo VII da carta das Nações Unidas, dado que o artigo 51, estipula que as nações têm o direito de se defender contra qualquer ataque armado – justamente o que tinham de fazer os norte coreanos. Mas os EUA nunca se preocuparam muito com a legalidade. E não se preocuparam no decurso de todo o seu projeto, que era conquistar e ocupar a Coreia do Norte, como um passo para invadir a Manchúria e a Sibéria e não seria a legalidade que os ia impedir de prosseguir esse caminho.

Muitos ocidentais não têm ideia das destruições infligidas pelos americanos e seus aliados na Coreia. Pyongyang encontrou-se sob um tapete de bombas, os civis fugindo à carnificina foram metralhados pelos aviões dos EUA em voos rasantes. O New-York Times escreveu na altura que 17 milhões de toneladas de napalm foram lançadas durante os 20 primeiros meses da guerra na Coreia. Os EUA deixaram cair um peso de bombas mais importante sobre a Coreia do que sobre o Japão durante a Segunda Guerra Mundial. As forças armadas dos EUA assassinaram não apenas os membros do partido comunista, mas também as suas famílias. Em Sinchon, vimos provas de que soldados dos EUA obrigaram 500 civis a colocar-se numa vala, regaram-nos com gasolina e queimaram-nos. Estivemos num abrigo com paredes ainda enegrecidos com a carne queimada de 900 civis, incluindo mulheres e crianças que procuravam proteger-se durante um ataque dos EUA. Soldados americanos foram vistos a despejar gasolina em aberturas de ventilação do abrigo e fazê-los morrer carbonizados.

Esta é a realidade da ocupação dos EUA para os coreanos. É a realidade que eles ainda temem e não querem mais ver repetida. Podemos censurá-los?

Apesar de todos estes casos, os coreanos estão dispostos a abrir os seus corações aos seus antigos inimigos. O major Kim Myong Hwan, que na época era o principal negociador em Panmunjom, na linha da DMZ, revelou-nos que o seu sonho era ser escritor, poeta, jornalista, mas contou-nos com ar triste, como ele e os seus cinco irmãos estavam a fazer rondas de vigilância na linha da zona desmilitarizada, como os soldados, por causa do que aconteceu à sua família. Ele disse que a sua luta não era contra os americanos, mas contra o seu governo. Foram os único sobreviventes da família perdida em Sinchon. O seu avô tinha sido pendurado num poste e torturado, a avó dele morreu com uma baioneta no estômago.
“Veja, nós temos de o fazer. Temos de nos defender. Nós não nos opomos aos norte-americanos. Somos contra a política dos EUA e os seus esforços para controlar totalmente o mundo e infligirem calamidades aos povos”.

A opinião da nossa delegação foi que, devido à instabilidade que mantêm na Ásia, os EUA conservam uma presença militar maciça que dificulta as relações entre a China e a Coreia do Sul, a Coreia do Norte e o Japão. Usam a sua presença como moeda de troca contra a China e a Rússia. Com a constante pressão no Japão para eliminar as bases dos EUA em Okinawa, as operações militares na Coreia e as manobras de guerra são um aspeto central dos seus esforços, visando dominar a região.

A questão não é saber se a RPDC tem armas nucleares, porque tem esse direito, mas se os EUA – que têm capacidades nucleares na península coreana, e que ali instalam atualmente o seu sistema de defesa antimísseis THADD, um sistema que ameaça a segurança da Rússia e da China – estão dispostos a trabalhar com a Coreia do Norte num tratado de paz.

Encontrámos norte-coreanos ansiosos pela paz e que não fazem questão em manter armas nucleares se a paz puder ser estabelecida (nota do editor - apesar de no fim da guerra da Coreia ter sido assinado um armistício nunca foi assinado um tratado de paz por exigência dos EUA e, com isso, os EUA justificam a presença das suas forças na Coreia do Sul e nas costas da península coreana).

Mas a posição dos EUA continua mais arrogante, agressiva, ameaçadora e perigosa do que nunca. Na época das “mudanças de regime”, das “guerras preventivas” e das tentativas dos EUA desenvolverem armas nucleares em miniatura, bem como o sua não obediência e  manipulação do direito internacional, não é surpreendente que a Coreia do Norte jogue a carta nuclear. Esta escolha foi feita pelos coreanos do Norte desde que os EUA os passaram a ameaçar numa base diária com uma guerra nuclear (nota do editor - esta ameaça vem desde a própria Guerra da Coreia quando o general McArthur se propôs lançar uma bomba nuclear sobre a Coreia, o que não foi aceite e conduziu à sua demissão pelo presidente Truman, apesar de nas décadas seguintes ter continuado a ser apontado no seio das forças armadas e na sociedade americana em geral, como um grande herói nacional).

A Rússia e a China, dois países que a lógica levaria a apoiar os norte-coreanos contra a agressão norte-americana, juntar-se-ão aos norte-americanos para responsabilizar os coreanos por se terem armado com a única arma que pode atuar como dissuasor de um ataque. A razão para isto não está clara, uma vez que os russos e os chineses têm armas nucleares e estão equipados para dissuadir qualquer ataque dos EUA, exactamente como fez a Coreia do Norte. Algumas declarações dos governos russo e chinês indicam que eles temem não ter controlo da situação, e que as medidas defensivas da Coreia do Norte atraiam um ataque dos EUA e de serem também atacados.

Essa ansiedade é compreensível. Mas isso levanta a questão de saber por que não podem apoiar o direito da Coreia do Norte à autodefesa e exercer pressão sobre os americanos para concluírem um tratado de paz, um acordo de não-agressão e retirar sua forças armadas e nucleares da Península coreana. Mas a grande tragédia é a óbvia incapacidade dos norte-americanos em pensarem por si próprios perante as mentiras contínuas e exigirem dos seus líderes que se esgotem todos os canais de diálogo e seja restabelecida a paz antes de encararem uma agressão na península coreana.

A base essencial da política da Coreia do Norte é alcançar um pacto de não agressão e um Tratado de paz com os EUA. Os norte-coreanos afirmaram repetidamente que não querem atacar ninguém, nem ferir ninguém, não estão em guerra contra ninguém. Mas eles viram o que aconteceu com a Jugoslávia, o Afeganistão, o Iraque, a Líbia, a Síria e inúmeros outros países, e não têm intenção de serem os próximos. É óbvio que vão defender-se vigorosamente contra qualquer invasão dos EUA e que a nação poderia suportar uma longa e difícil luta.

Num outro lugar da zona desmilitarizada, conhecemos um coronel que tinha instalado um par de binóculos, através do qual conseguimos ver para além da linha divisória entre o norte e o sul. Podemos ver uma parede de cimento construída no lado do Sul, em violação dos acordos de tréguas. O major Kim Myong Hwan disse que aquela estrutura fixa é uma “vergonha para os coreanos, que são um povo homogéneo”. Um alto-falante transmitia sem interrupção propaganda e música que vinha de alto-falantes do lado sul. Ele disse que esse barulho irritante dura 22 horas por dia. De repente, outro momento surreal, os alto-falantes do bunker começaram a entoar a Abertura Guilherme Tell de Rossini, mais conhecida nos Estados Unidos como o tema do” Lone Ranger”.

O coronel pediu-nos para ajudar as pessoas a entender o que realmente está a acontecer na Coreia do Norte, em vez de basearem as suas opiniões na desinformação. Disse: “Nós sabemos que, como nós, as pessoas amantes da paz na América têm crianças, parentes, famílias”. Dissemos-lhe que tínhamos a missão de ir para casa com uma mensagem de paz e esperamos voltar um dia e andar com ela livremente nestas belas colinas. Fez uma pausa e disse: “Também creio que é possível”.

Assim, enquanto o povo da Coreia do Norte espera a paz e a segurança, os EUA e o seu fantoche no sul da península coreana farão a guerra, ocupando-se durante os próximos três meses nos maiores jogos de guerra até agora organizados, com porta-aviões, submarinos carregados de armas atómicas e bombardeiros furtivos, aviões e um grande número de tropas, artilharia e tanques.

A campanha de propaganda atingiu níveis perigosos nos meios de comunicação, que acusam o Norte de ter assassinado um parente do líder da Coreia do Norte na Malásia, ainda que não haja provas e que o Norte não tivesse nenhum motivo para o fazer. Os únicos a beneficiar do assassinato são os EUA e os seus meios de comunicação controlados, que usam isso para atiçar a histeria contra a Coreia do Norte, que agora teria armas químicas de destruição em massa.

Sim, meus amigos, eles pensam que todos nós nascemos ontem e que não aprendemos nada sobre a natureza do domínio dos EUA e da sua propaganda. Será assim tão espantoso que os norte-coreanos temam que estes “jogos” de guerra se transformem um dia em realidade e que estes “jogos” não sejam senão a cobertura para um ataque e para criar ao mesmo tempo um clima de terror na população, coreana?

Haveria muitas coisas a dizer sobre a natureza real da RPDC, dos seus habitantes, do seu sistema socio-económico e da sua cultura. Mas não há espaço para isso agora neste texto. Espero que as pessoas sejam capazes de dar-se conta, por si próprias, da experiência do nosso grupo. Termino com o último parágrafo do relatório comum que fizemos no regresso da RPDC, e espero que as pessoas o compreendam bem, reflitam e ajam de forma a apelar à paz.

“Aos povos do mundo tem de ser divulgada a história completa acerca do que se passou na Coreia e o papel do nosso governo no estimular desequilíbrios e conflitos. Devem ser tomadas medidas pelos advogados, grupos comunitários e ativistas pela paz e todos os cidadãos do planeta, para impedir o governo dos EUA de levar a cabo uma campanha de propaganda visando apoiar a agressão contra a Coreia do Norte.

Os norte-americanos têm sido alvo de um grande embuste. O que está em jogo é muito importante para nos permitirmos ser enganados novamente. Esta delegação de paz aprendeu na Coreia do Norte um elemento importante da verdade essencial nas relações internacionais. É que só com ampla comunicação e negociação, seguida do respeito pelas promessas e profundo compromisso com a paz, se pode – literalmente – poupar o mundo a um sombrio futuro nuclear. A experiência e a verdade irão libertar-nos da ameaça de guerra. A nossa viagem à Coreia do Norte, este relatório e o nosso projeto atual são esforços para nos libertarmos dela”.

* Advogado especialista em direito penal internacional, com escritório em Toronto. É conhecido pelos casos de crimes de guerra mediáticos que analisou. Publicou recentemente o romance Beneath the Clouds . Escreve ensaios sobre direito internacional, política e acontecimentos mundiais.
original publicado em journal-neo.org/2017/03/13/north-korea-the-grand-deception-revealed/

sexta-feira, 14 de abril de 2017

"La realtà non è come ci appare."
"A realidade não é como parece."

Carlo Rovelli

físico e filósofo da ciência italiano, n.1956,
no título do seu livro de 2014.

Judeus de quem Israel não gosta


Marino Boieira
(publicado no Pravda de26 de Março de 2017)

Uma das grandes mentiras, que já tem 70 anos, é de que o Estado de Israel vive ameaçado pelos árabes na Palestina. Goebbels já dizia que uma mentira repetida mil vezes se transforma em verdade. Os pobres palestinianos os foram expulsos de sua terra pela maior potência militar do Médio Oriente...

Os pobres palestinianos foram expulsos da sua terra pela maior potência militar do Médio Oriente, que inclusivamente dispõe de armas atómicas e apenas tem o apoio apenas formal dos governos árabes corruptos da região e, mesmo assim, o lobby judaico no mundo inteiro, transformou-os num perigo para a paz na região.

Ainda bem que existem intelectuais judeus que se recusam a pactuar com essa mentira histórica. Vamos lembrar aqui alguns deles, começando por Noam Chomsky, o mais conhecido deles todos.
 
 
Avram Noam Chomsky nasceu em 1928, na Filadélfia, é linguista, filósofo, cientista e professor emérito do Instituto Tecnológico de Massachusetts e, apesar de todos estes títulos, está proibido de visitar Israel, por causa das suas críticas ao governo israelense, como numa comparação que fez sobre a política do apartheid na África: 

"Nos territórios ocupados, o que Israel está a fazer é muito pior que o apartheid. (...) os brancos sul-africanos precisavam da população negra. Era a sua força de trabalho. Tinham que os sustentar. Os "bantustões" eram horríveis, mas a África do Sul precisava deles. (...) A relação de Israel com os palestinianos é diferente. Israel simplesmente não quer os palestinianos. Israel quere-os fora da sua terra ou, pelo menos, na prisão".
Bombardeamento israelita em Gaza em 2009
 

Sobre o Hezbollah: "Foi fundamental para expulsar os israelitas do Sul do Líbano, e por isso é classificado pelos Estados Unidos como organização terrorista "

Sobre o Hamas: "Eu sou contra as políticas do Hamas em quase todos os aspectos. No entanto, devemos reconhecer que as políticas do Hamas são mais próximas e mais propícias a uma solução pacífica do que as dos Estados Unidos ou de Israel"

Shlomo Sand nasceu em Linz, na Áustria, em 1946 e é professor da História na Universidade de Telavive. O seu livro mais famoso,” A Invenção do Povo Judeu”, deita por terra o mito fundador do Estado de Israel de que os judeus actuais são descendentes dos antigos hebreus que viveram na Palestina durante o Império Romano e, por isso mesmo, teriam direito exclusivo às terras que os árabes ocuparam depois.

Sand argumenta que é provável que os antepassados da maioria dos judeus contemporâneos sejam essencialmente de fora da Terra de Israel (Eretz Yisrael) e que uma "nação-raça" dos judeus, com uma origem comum, nunca existiu. Assim como os cristãos mais contemporâneos e muçulmanos são descendentes de pessoas convertidas, e não dos primeiros cristãos e muçulmanos. O judaísmo era originalmente, assim como seus dois primos, um proselitismo religioso. Muita da população judaica mundial dos dias de hoje é descendente de europeus, russos e grupos africanos.

Sand ataca também outra história cara ao judaísmo, a de que, depois da revolta de Bar Kokhba, os judeus foram expulsos da Palestina pelos romanos. Diz ele que a maioria dos judeus não foi exilada pelos romanos e muitos deles se vieram a converter ao islamismo após a ocupação da Palestina pelos árabes no século sétimo.

O sionismo, segundo Sand, foi mais um dos movimentos nacionalistas surgidos na Europa no século XIX que sonhavam com uma hipotética "idade do ouro", existente no passado. Os judeus seriam então descendentes de um mítico reino de David, o que significaria uma base étnica comum, quando o que os unia, na verdade, era apenas a religião comum.

Norman Gary Finkelstein, nascido em 1953, em Nova Iorque, filho de pais sobreviventes de Auschwitz, doutor pela Universidade de Princeton e professor da Universidade de Nova York, é mais um dos intelectuais judeu s proibidos de entrar em Israel, principalmente por causa do seu livro "A Indústria do Holocausto - Reflexões Sobre a Exploração do Sofrimento dos Judeus" onde afirma que ""o organizado judaísmo americano explorou o Holocausto nazista para desviar as críticas de Israel e suas políticas moralmente indefensáveis

Segundo Finkelstein, depois da Segunda Guerra Mundial, as organizações judaicas dos Estados Unidos, as mais poderosas do mundo - sempre com o apoio de publicações como "New York Times" e "Washington Post", os dois jornais mais conhecidos do país, além de revistas, como "Time" e "Newsweek" -, esqueceram praticamente o Holocausto, porque a Alemanha se tornou num aliado fundamental no confronto dos EUA com a União Soviética.

Lembrar o Holocausto nazi levava a etiqueta de causa comunista. As associações judaicas chegaram a fazer vista grossa à entrada de nazis nos Estados Unidos.

Ainda segundo Finkelstein, a partir de junho de 1967, com a guerra árabe-israelita, o Holocausto tornou-se numa fixação na vida dos judeus americanos. Desde a sua fundação em 1948 até a guerra de junho de 1967, Israel não figurou como foco no planeamento estratégico americano. "A indústria do Holocausto só se difundiu depois da dominação militar esmagadora e do florescente e exagerado triunfalismo entre os israelitas".

Diz Finkelstein: "Não foi a alegada fraqueza e isolamento de Israel, nem o medo de um “segundo holocausto”, mas antes a sua comprovada força e aliança estratégica com os Estados Unidos, que conduziram as elites judaicas a produzir a indústria do Holocausto, depois de junho de 1967.

Outro forte motivo por detrás desta farsa era material. O governo alemão do pós-guerra compensou os judeus que estiveram em campos ou guetos. Muitos desses judeus recriaram os seus passados para atender a essas exigências"

Ilan Pappé: nascido em 1954, Haifa, Israel, é um historiador, professor de História na Universidade de Exeter, no Reino Unido. Foi docente em Ciências Políticas na sua cidade natal, na Universidade de Haifa.

É um dos chamados Novos Historiadores, que reexaminaram criticamente a História de Israel e do sionismo. Pappé faz uma análise profunda sobre os acontecimentos de 1948 (criação do Estado de Israel) e dos seus antecedentes. Em particular, defende no seu livro mais importante, “Limpeza Étnica na Palestina” que houve a expulsão deliberada da população civil árabe da Palestina - operada pelo Haganah, pelo Irgun e por outras milícias sionistas.

Pappé considera a criação de Israel como a principal razão para a instabilidade e a impossibilidade de paz no Médio Oriente. Segundo ele, o sionismo tem sido historicamente mais perigoso do que o islamismo extremista.

 Ilan Pappé é um importante defensor da solução de um único estado para palestinos e israelenses.

Em 2008, Ilan Pappé exilou-se na Grã-Bretanha, onde atualmente é professor de História na Universidade de Exeter e diretor do Centro Europeu de Estudos sobre a Palestina.

Antes de deixar Israel, foi veementemente condenado no Knesset, o parlamento de Israel. Um Ministro da Educação pediu a sua demissão da universidade, e a sua foto foi publicada num jornal, como o centro de um alvo. Além disso, Pappé recebeu várias ameaças de morte.

"Fui boicotado na minha universidade e houve tentativas de me expulsarem do meu trabalho. Recebo chamadas telefónicas com ameaças todos os dias. Não estou a ser visto como uma ameaça para a sociedade israelita, mas o meu povo pensa que sou louco ou que a minha opinião é irrelevante. Muitos israelitas acreditam também que estou a trabalhar como mercenário para os árabes.

Judith Butler, nascida em Cleveland, Ohio, em1956, de origem judaica, teve a sua família, pelo lado materno, morta em campos de concentração nazis na Hungria. É professora de Filosofia na European Graduate School, na Suiça, sendo considerada uma das principais teóricas do feminismo no mundo inteiro. O seu livro "Caminhos Partidos: Judaísmo e Critica do Sionismo" a levou-a a ser considerada como antissemita pelo jornal Jerusalem Post, porque defendeu o binacionalismo em Israel, dizendo que "é preciso acabar com a ocupação, que é ilegal e é uma extensão de um projeto colonial".

Judith Butler defende outra tese, que os governantes de Israel detestam ouvir: o direito de retorno dos palestinos expulsos de suas casas e de suas terras e que eles sejam indemnizados pelas suas perdas.

 
O autor deste texto é Marino Boeira é jornalista, formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Como seu editor e revisor do texto para português de Portugal, entendo emitir a minha opinião de que a utilização pelos que, justamente, criticam Israel, da expressão “indústria do holocausto” tem sido aproveitado por Jihadistas para negar a existência do Holocausto, em prejuízo da verdade histórica e reforço dos lobbies sionistas.