Os crimes e a NRA
Wayne LaPierre, dirigente da todo-poderosa
NRA (National Rifle Association), referiu (1), na sequência do novo massacre
num liceu da Florida, e depois de ser pressionado por protestos contra a
liberalização de venda de armas, em tom agressivo que "As elites [os que
protestam] não se preocupam com o sistema de ensino americano nem com as
crianças. O seu objetivo é eliminar a 2.ª Emenda e as nossas liberdades em
relação às armas, para que possam erradicar todas as liberdades
individuais". (sic!).
Durante a Conservative Political
Action Conference (CPAC), uma conferência de cariz conservador, LaPierre avisou
também que existe uma "agenda socialista" por trás daqueles que
querem mais controlo no que toca às armas e às leis sobre as mesmas. O direito às armas, frisa, é
"garantido por Deus a todos os americanos como direito de nascença".
Acrescentou também que "os
oportunistas não perderam um segundo para explorar a tragédia para ganho
político", referindo-se mais uma vez ao massacre da Florida.
Em linha com a sugestão de Donald
Trump de armar os professores "com treino militar", o líder da NRA
disse que as "escolas têm de ser mais duras e o mal deve ser confrontado
com toda a força necessária para proteger as crianças".
"Para parar uma pessoa má
com uma arma é preciso uma pessoa boa com uma arma", disse LaPierre no fim
do discurso, repetindo uma frase que já utilizou aquando do massacre de Sandy
Hook, em Dezembro de 2012.
Na mesma altura, Trump defendia a
distribuição de armas aos professores para defenderem as escolas de alunos
criminosos!...
O sofrimento transformou-se em raiva,
era o título da edição online do
Süddeutsche Zeitung do dia desta última tragédia da Florida, informando que
estudantes, pais e professores da Flórida se manifestaram por leis do armamento
mais restritivas: "Basta, Basta!" e "Trump é uma vergonha".
Em 19 de Fevereiro, a Spiegel online
já falava sobre uma "rebelião de adolescentes". A chamada geração de Columbine (onde ocorreu o
massacre numa escola em 1999) quer lutar e fazer algo com manifestações, com
entrevistas de TV, com chamadas de protesto no Facebook, Twitter e Instagram.
Depois da inépcia revelada pelo
FBI que não tirou consequências da sinalização feita pelo jovem homicida do que
poderia vir a fazer, e do acobardamento de um grupo de 4 polícias, que fugiu
por estar insuficientemente armados (!) é de perguntar se este massacre da
escola com 17 mortos não poderia ter sido evitado. Mas quem benefíciou com ele?
(Cui bono)? Esse crime poderia
"pressionar" o presidente dos EUA a intensificar a maior
liberalização de venda de armas? Para já não, mas originou a grotesca intenção
de distribuir armas aos professores!...
A 2ª Emenda
A Segunda Emenda à Constituição
dos Estados Unidos, aprovada em 15 de Dezembro de 1791, estabeleceu,
textualmente, que “Sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência
de uma milícia bem organizada, o direito do povo de possuir e usar armas não
poderá ser infringido”.
Protegeu, assim, o direito da
população de, através de uma milícia, deter e ter porte de armas. Foi aprovada
juntamente com as outras nove primeiras emendas constitucionais constantes da
Carta dos Direitos dos Estados Unidos (em inglês, United States Bill of Rights)
(2) ou Declaração dos Direitos dos Cidadãos dos Estados Unidos (3).
A Segunda Emenda baseou-se
parcialmente no direito de ter armas e o seu porte, previsto na common-law da Inglaterra, e foi
influenciada pela Declaração de Direitos de 1689, também inglesa.
Esse direito foi descrito por Sir
William Blackstone como um direito auxiliar, de apoio aos direitos naturais de
autodefesa e resistência à opressão e ao dever cívico de agir coletivamente na
defesa do Estado.
Em muitos estados federados
norte-americanos, qualquer pessoa, independentemente da cor, raça ou credo,
pode pedir e obter licença para a posse e o porte de armas sob algumas
condições (ressalvando-se que cada estado tem também suas regras específicas).
A arma em questão, quando transportada, deve ser visível e não deve conter
munição no cano. A compra de armas por menores de idade é proibida, mas nem
sempre. No seu uso durante a prática de caça, por exemplo, o menor pode usar
armas, desde que esteja acompanhado pelos pais ou pessoa responsável.
Como várias outras emendas
constitucionais, a Segunda Emenda é produto de um contexto, neste caso do da
luta pela independência face ao império britânico, que mesmo depois da declaração
da independência atacou o novo país. A posse de armas pelas milícias era,
então, considerada a única forma de os cidadãos defenderem o seu território.
Do sentido inicial evoluiu para
um direito relacionado com a segurança pública, mesmo individual, que devia
estar cometida às autoridades competentes como acontece noutros países.
A partir do século XIX, os
tribunais dos Estados Unidos passaram a dar diferentes interpretações à Segunda
Emenda, no sentido de proteger este entendimento.
Já, no século XXI, a Segunda
Emenda passou a ser objeto de renovado interesse acadêmico, jurídico e
político. A questão central é se o direito de porte de armas seria extensivo
aos cidadãos individuais ou se seria limitado apenas às milícias (os atuais
exércitos nacionais).
No caso do processo Distrito de
Columbia versus Heller (2008) o Supremo Tribunal proferiu uma sentença
histórica (4), afirmando expressamente que a Segunda Emenda protege o direito
individual de posse e porte de armas de fogo e, ao mesmo tempo, declarando
inconstitucional a lei do Distrito de Columbia que vetava a posse de armamento
aos residentes.
Assim ficou estabelecido o
direito individual dos cidadãos dos Estados Unidos de se armarem, anulando-se a
lei que, 32 anos antes, proibira que se tivesse em casa uma pistola para defesa
pessoal na cidade de Washington. Todavia, no processo McDonald versus Chicago
(2010), o Tribunal esclareceu as suas decisões anteriores, declarando
expressamente que a decisão se aplicava não apenas ao governo federal, mas
também, na mesma medida, aos governos estaduais e locais. A sentença deu uma interpretação definitiva à Segunda Emenda, que
sancionou o direito de porte de armas, reconhecendo esse direito como
inviolável, tal como acontece como o direito ao voto e a liberdade de expressão
(5).
Essa decisão continua em debate
nos EUA, sendo continuamente alvo de discussões por parte de quem dela discorda
e que são cada vez mais.
A pista esquecida
Na comunicação social e na
internet discute-se sobre a origem de casos de assassinatos nas escolas. Com
argumentos comprováveis cientificamente e outros perfeitamente inverosímeis.
Mas há sempre um dado ausente da
controvérsia, como refere Carey Wedler (6) e que se pode encontrar repetido nos
perfis dos autores dos vários assassínios: um número crescente de atiradores em
massa tem vínculos com os militares, incluindo Nikolas Cruz, que era membro da
organização de preparação militar da escola, JROTC (corpo de treino do oficiais
de reserva juniores).
Os Estados Unidos entregaram-se a
uma cultura de militarismo "patriótico" durante décadas, glorificando
essa violência institucionalizada como sinal de força e de boa moral. Como foi
observado na semana passada, pouco depois do tiroteio da Flórida, os
norte-americanos guardam na memória aqueles que cometem violências em nome do
governo e têm-nos na mais elevada estima enquanto criticam outros que expressam
opiniões diferentes ou não se inclinam perante as pessoas que servem essas
instituições.
Na verdade, essa glorificação da
violência protege e estimula os indivíduos que cometem actos de violência em
massa.
Os legisladores ainda não
quiseram enfrentar a amarga verdade de que a América está em guerra consigo
mesma. Uma guerra civil que a consome por dentro. As armas de fogo estão a
roubar, implacavelmente, em média as vidas de 33.880 habitantes por ano - quase
cinco vezes mais que soldados americanos mortos somados nas guerras do Iraque e
do Afeganistão (4.530 e 2.408, respectivamente). Em média, 93 pessoas são
mortas pela violência armada todos os dias, e pelo menos 239 disparos escolares
ocorreram nos Estados Unidos desde 2012. A maioria das mais de 400 vítimas é de
menores de 19 anos. E, no entanto, depois de cada carnificina, ouvem-se os
líderes políticos a sugerir que não é o momento certo para falar sobre leis de
controlo de armas quando as famílias e os amigos das vítimas estão agonizam com
a perda de seus entes queridos. Quando chegará o momento certo? Quanto mais
sofrimentos devem os cidadãos norte-americanos sofrer, antes que se actue em
conformidade?
Para um entendimento da “geração Columbine”
Como qualquer outra designação da
geração envolvida nestes massacres, esta, resultante da oportunidade
jornalística do termo, não compromete o conjunto da necessária reflexão.
Pouco depois do último tiroteio
no liceu de Portland, na Florida, um antigo oficial da CIA e do FBI, Philip
Medd, especialista nestes casos afirmou à CNN que este assassinato em massa não
se deu por acidente, nem por azar, mas como consequência de inação na América que
não pode aceitar passar por uma "epidemia de matanças em massa”.
Referimos ainda trabalhos de
outros psicólogos.
Já de há muitos anos é sabido,
com base em estudos científicos, que os comportamentos agressivos e violentos,
tal como outros comportamentos humanos, devem ser entendidos não como inatas
mas como comportamentos resultantes de relações sociais. Os cientistas norte-americanos
Albert Bandura e Richard (7) referiam nas suas investigações que as crianças
imitavam pais, irmãos e amigos de brincadeiras. E assim como adquiriam
competências cognitivas e sociais, ganhavam comportamentos agressivos logo nos
primeiros anos de vida. É uma aprendizagem feita a partir do que são os seus modelos
de referência.
Esta influência dos modelos é tão
forte que até as crianças sem predisposição para violência assumem o
comportamento agressivo dos modelos que seguem. Com esta explicação, certas
teorias de agressão (hipótese de um comportamento agressivo, hipótese da
frustração de agressão) e outras teorias acabaram por ser refutadas.
Ao procurar as causas do aumento
da violência juvenil, é importante destacar o papel do universo mediático,
especialmente a violência nos computadores e os videojogos. Tem-se verificado
que os produtos cada vez mais brutais de TV e os jogos violentos contribuem
significativamente para o desenvolvimento da delinquência infantil e juvenil e
para o aumento da violência juvenil.
Videojogos violentos e os
"jogos assassinos" de computador têm sido disponibilizados com
grandes recursos publicitários aos jovens de todo o mundo desde o início da
década de 90 pela indústria de jogos, com valores de vários milhares de milhões
de dólares como entretenimento e a "diversão pelo jogo". São
produzidos em cooperação com o Pentágono. O psicólogo militar norte-americano,
internacionalmente reconhecido, coronel Dave Grossman, especialista em
psicologia da matança, descreve estes jogos de violência como "simuladores
de assassinos em massa".
O psicólogo alemão Rudölf Hansel,
perito em prevenção de violência juvenil, de Lindau, na Alemanha, sublinhou
que, apesar das investigações sobre o impacto do universo mediático ter
eliminado, já há muitos anos, as últimas dúvidas e conduzido a provas
conclusivas de que o uso de videojogos violentos produz filhos mais agressivos
e menos tolerantes - independentemente da idade, gênero ou contexto cultural -
o lobbie do sector de filmes e jogos, em associação com jornalistas, políticos
e cientistas, conseguiu, ao longo da última década, desestabilizar pais,
professores e educadores, com declarações falsas e questionando os sólidos
resultados das investigações (8).
A Rudölf Hansel não escapou a
profecia do ex-presidente norte-americano Reagan na década de
1980:"Recentemente ouvi algo interessante sobre jogos de vídeo. Muitos
jovens desenvolveram destreza incrível nas mãos, olhos e na coordenação do
cérebro nestes jogos. A Força Aérea acredita que essas crianças serão pilotos
excepcionalmente bons quando pilotarem os nossos jactos...”
Voltando a Dave Grossman, no seu
livro de 1999, “Stop Teaching our Kids to Kill” (disponível na Amazon) refere:
“Há três coisas que são
necessárias para atirar e matar de forma eficaz e eficiente disse um veterano
da guerra do Vietname a um jovem de onze anos em Jonesboro. Qualquer pessoa que
não preencha as três falhará nos esforços para matar alguém. Primeiro, é
necessária uma arma. Depois a capacidade para atingir o alvo com a arma. E,
finalmente, ter vontade de usar essa arma. A arma, a capacidade e a vontade.
Destes três factores, os militares sabem que os simuladores da morte tratam de
dois: a capacidade e a vontade para matar um ser humano " (9).
O resultado amargo deste treino
para o assassinato são as crianças e adolescentes que disparam sobre irmãos,
pais, seus colegas de escola e professores. Numa personalidade narcisista, isso
é geralmente provocado por supostos insultos, rejeições e interpretações
negativas de acontecimentos. O sentimento de estar certo e restaurar a justiça
também desempenha um papel (10). Se o jovem tiver uma arma disponível, essa agressão
narcisista transforma-se em assassinato em massa com muitas mortes - como
aconteceu recentemente na Flórida.
Além do uso excessivo de jogos de
violência, um outro fator é também responsável por crimes como tiroteios na
escola: os adultos não estão suficientemente presentes na vida de crianças e
adolescentes. As suas atenções para com eles são de grande importância para o
desenvolvimento na infância e na adolescência.
Se os adultos não estão presentes
na vida dos adolescentes, também não lhe podem ensinar valores de adultos, como
autoconfiança, autodisciplina, cortesia, respeito mútuo, paciência, generosidade
e empatia com os outros. As investigações empíricas sobre "tiroteios
escolares" nos EUA revelam fortes evidências da ausência de aconselhamento
e orientação de adultos e especialmente por parte dos pais (11).
Quem conhece as escolas e os seus
alunos deveria conhecer os hábitos de uso de redes sociais, videojogos e
consumo de filmes de violência, os respectivos ambientes familiares por detrás
dos comportamentos violentos e das más classificações escolares. E disso
sinalizar as autoridades competentes nos planos educativo, social e de
segurança. Uma nova função do professor?
Notas
(1) DN, 22 de Fevereiro de 2018.
(2) Primary Documents in American
History: The Bill of Rights. The Library of Congress.
(3) The Bill of Rights - texto original
e texto atual (em inglês).
(4) CRS Report for Congress District
of Columbia v.Heller: The Supreme Court and the Second Amendment. Congressional
Research Service T.J. Halsted, Legislative Attorney, American Law Division. Order Code RL34446. 11 de Abril de 2008.
(5) Liptak, Adam (28 de Junho de 2010). «Justices Extend Firearm Rights in 5-to-4 Ruling». The New York Times,
17 de Dezembro de 2012
(6) Carey Wedler, Global Research, 25
de Fevereiro 2018.
(7) Albert
Bandura e Richard Walters, “International Journal of Group Psychotherapy”,
1961, 11(1), p. 94.
(8) Rudölf Nansel, Global Research, 23 de Fevereiro de 2018.
(9) Grossman, D. /DeGaetano, G.
(2002). Wer hat unseren Kindern das Töten beigebracht? Ein Aufruf gegen Gewalt
in Fernsehen, Film und Computerspielen. Stuttgart, S. 86).
(10) Vgl. Füllgrabe, U.
Gewaltförderung durch falsche Paradigmen. reportpsychologie 1/2007, S. 12-27.
(11) Schneider, H. J. Delinquenz
Jugendlicher. In: Kriminalistik 4/2000, S. 26.
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