Passado e presente de um país ainda com futuro. História,
política e economia de uma região na encruzilhada de continentes e de
civilizações, devastada pela geoestratégia imperial dos EUA.
Falar do Afeganistão, 16 anos depois de as Twin Towers ainda
esperarem a verdade desse massacre fundador, é um percurso de dor e de uma
consciência que se vai construindo, através das peças de um puzzle onde as
pessoas parecem ser o que menos interessa.
Mas também constitui uma oportunidade para recuperar hoje
elementos essenciais da situação no Afeganistão para se compreender como tudo
surgiu e porque muito ainda se mantém.
A recente série de atentados terroristas no Afeganistão
Há duas semanas, no dia 29 de Janeiro, um ataque suicida
perpetrado por cinco atacantes, contra um posto militar em Cabul, próximo da
principal academia militar do país, deixou 11 soldados mortos e 15 feridos.
Quatro dos atacantes foram mortos ou fizeram-se explodir e um quinto terrorista
foi preso. O ataque foi reivindicado pelo Estado Islâmico (EI, Al-Qaeda e
Talibans interpenetram-se num jogo de espelhos comandado por serviços secretos
ocidentais que os criaram e/ou assessoraram).
Foi mais um de uma série recente de ataques no Afeganistão.
No sábado anterior, dia 27, outros terroristas usaram uma ambulância-bomba para
matar 103 pessoas e ferir outras 235. O chefe da missão da ONU no Afeganistão,
Tadamichi Yamamoto, classificou o ataque como uma «atrocidade». No dia 24, um
grupo tinha atacado a sede da ONG «Save the Children» em Jalalabad, provocando
três mortos e 24 feridos. No dia 20, um ataque armado ao luxuoso Hotel
Intercontinental de Cabul causara 19 mortos, 14 dos quais estrangeiros,
provocando um grande incêndio em vários andares do prédio.
Para compreender esta agressividade assassina crescente, o
jornalista afegão Masud Waganas referia, há dias, existirem fortes rivalidades
geopolíticas entre poderes, imperialistas e hegemónicos, relativas aos recursos
naturais do Afeganistão e às rotas comerciais e de trânsito, atendendo à
localização geoestratégica do país, tendo essas rivalidades crescido de forma
significativa nos últimos anos.
O legado do Império
Britânico, o regime democrático e socialista, a intervenção soviética e o
regime Taliban
Cerca de 90 anos tarde foi precisamente entre as rebeldes
tribos Pashtun que nasceu o movimento Taliban, que, em poucos anos, ganhou a
guerra civil e se estabeleceu no poder no Afeganistão. Desalojado do governo de
Cabul pela intervenção americana, ainda hoje dominam boa parte do território
afegão e mantêm em cheque o governo de Karzai e os seus aliados americanos.
A intervenção norte-americana começa a ocorrer após a Segunda Guerra Mundial, em 1950, a partir da Directiva 68 de Segurança Nacional onde se afirmava que a URSS tinha o «desígnio do domínio do mundo». Em 1956 os EUA construíram em Kandahar um aeroporto internacional que servia a actividade de bombardeiros para a declarada eventualidade de um confronto com a URSS. No início dos anos 70 a CIA garantiu a retaguarda dos radicais islâmicos até ao início de 1973.
Em Agosto de 1979, um relatório classificado do Departamento
de Estado afirmava: «os interesses maiores dos Estados Unidos (…) serão
satisfeitos com o desaparecimento do actual regime afegão, apesar de quaisquer
contratempos que isso possa significar para as futuras reformas sociais e
económicas no Afeganistão.»
Zbigniew Brzezinski, assessor de segurança nacional do
presidente Carter, admitiu, após a guerra contra os soviéticos, que a CIA
fornecia ajuda secreta aos Mujahideen afegãos seis meses antes da invasão
soviética. E salientou que a intenção dos EUA ao fornecer essa ajuda era
«atrair os russos para a armadilha afegã». No dia em que os soviéticos cruzaram
oficialmente a fronteira, afirmou ter escrito ao presidente Carter: «agora
temos a oportunidade de dar à URSS a sua Guerra do Vietname.» A intervenção
soviética no Afeganistão, a 26 de Dezembro de 1979, a pedido do governo afegão,
envolveu as forças soviéticas no apoio ao governo marxista do PDPA contra os
fundamentalistas islâmicos, principalmente Mujahideen.
Após a intervenção, os Estados Unidos foram rápidos em fornecer
armas aos Mujahideen. Em Fevereiro de 1980, o Washington Post informou que eles
estavam a receber armas provenientes do governo dos EUA. Os montantes foram
significativos: 10 mil toneladas de armas e munições em 1983, que foram
crescendo e atingiram 65 mil toneladas 1987, de acordo com Mohammad Yousaf,
general paquistanês que supervisionou a guerra secreta de 1983 a 1987. Milton
Bearden, chefe da estação da CIA no Paquistão de 1986 a 1989, que foi
responsável por armar os Mujahideen, comentou: «Os EUA estavam a lutar contra
os soviéticos até ao último afegão».
Estima-se que os EUA e a Arábia Saudita deram 40 mil milhões
de dólares em armas e dinheiro aos Mujahideen fundamentalistas ao longo da
guerra. O dinheiro foi canalizado através do governo do Paquistão, que usou
algum dele para criar milhares de escolas religiosas islâmicas fundamentalistas
(madrassas) para as crianças refugiadas afegãs que inundaram o país. Estas
tornaram-se as instituições de formação para os Talibans.
Em Maio de 1988 a União Soviética começou a retirada das
suas tropas do território afegão, uma retirada que só completou em Fevereiro de
1989. Porém, mesmo após a retirada, a guerra civil continuou no país até os
rebeldes tomarem Cabul, em Abril de 1992, assassinando o presidente deposto,
Mohamed Najibulah, que tivera o apoio dos soviéticos.
O país passou a ser uma república islâmica e, no ano
seguinte, uma assembleia nacional, composta por várias facções rivais, líderes
tribais e religiosos, aprovou a criação de um novo parlamento. Esta união entre
as várias facções durou pouco tempo. Violentas disputas internas favoreceram a
ascensão de uma nova força política, os Talibans, grupo fundamentalista
islâmico financiado pelo Paquistão. A partir daí foram anos de destruição do
país, da sua cultura, dos direitos dos cidadãos, de assassinatos em massa que
conduziram o país ao que hoje existe: um país de privações alimentares; de
habitação, saúde, e de direitos democráticos condicionados; com regras rígidas
para as mulheres e destruído por sucessivas guerras.
O regime socialista e
as transformações no Afeganistão (1978-1992)
1. Legislação. Direitos.
O novo governo iniciou um programa de reformas que eliminou a usura, lançou uma campanha de alfabetização, eliminou a cultura do ópio, legalizou os sindicatos, estabeleceu um salário mínimo e diminuiu entre 20% e 30% os preços dos bens mais necessários, introduziu o ensino superior qualificado para os trabalhadores, aumentou os salários numa média anual de 26% e os salários mais baixos em 50%.
O Estado subsidiou, para os manter, os preços de bens
básicos, como a gasolina, o gasóleo, o querosene («petróleo») ou o açúcar,
enquanto outros, como o trigo, a farinha e a lenha, passaram a ser vendidos a
preços fixos.
Quanto aos direitos das mulheres, o regime socialista
concedeu a permissão para não usar véu, aboliu o dote, promoveu a integração
das mulheres no trabalho (245 mil trabalhadoras, sendo 40% dos médicos
mulheres) e a alfabetização (o analfabetismo feminino foi reduzido de 98% para
75%); 60% do corpo docente da Universidade de Cabul passou a ser de mulheres,
440 mil mulheres passaram a trabalhar na educação e 80 mil participaram na
campanha de alfabetização. O mesmo aconteceu na vida política. As mulheres
passaram a ter, por lei, direitos iguais aos dos homens.
A taxa de mortalidade de crianças menores de cinco anos
diminuiu de 38% em 1960 para 30% em 1988, 80% da população urbana passou a ter
acesso aos serviços de saúde e a expectativa de vida, de 33 anos em 1960,
passou para 42. Duplicou o número de camas hospitalares. Aumentou em 50% o
número de médicos. Pela primeira vez foram criados jardins-de-infância e casas
de repouso para os trabalhadores.
Foi realizada a cobertura hospitalar e de centros de saúde,
mesmo nas regiões rurais remotas. O acesso aos cuidados de saúde era gratuito e
os medicamentos eram vendidos a preços acessíveis, e para os mais pobres, os
medicamentos eram entregues gratuitamente.
Centenas de milhares de pessoas foram alfabetizadas e 63% das crianças frequentaram o ano escolar em 1985.
Foi fundada a Academia de Ciências (1980), o Instituto
Pedagógico (1987) e universidades em Balha (1988), Herat (1988) e Kandahar
(1990). O Afeganistão enviou para o espaço o primeiro e único cosmonauta da sua
história, Abdul Ahad Mohmand, em 1988. Também desenvolveu a cinematografia
nacional.
2. Economia
A Checoslováquia abriu um alinha de crédito para ser
construída uma linha de eléctricos em Cabul, equipadas minas de carvão e
construída uma fábrica de cimento em Herat. Com créditos da Bulgária, foi
construída uma grande exploração aviária, explorações de ovinos e de seda,
outras empresas de aves, de produtos lácteos, tijolo e curtumes, e duas
empresas para o sector das pescas. A Alemanha Oriental participou da criação de
uma central telefónica automática em Cabul, que estabeleceu as linhas de
comunicação e a ampliação do sistema de fornecimento de electricidade em várias
cidades. A Hungria participou da construção de uma empresa farmacêutica.
Para além do comércio com o campo socialista, no início dos
anos 80, o volume de comércio entre o Afeganistão e o Japão tinha aumentado 33%
e ambos os países criaram a empresa comercial conjunta Nichi-afegã Lda. Também
o comércio com a Índia aumentou em 50%.
A guerra civil viria a provocar graves danos para a economia
afegã. Só até 1985 o número de perdas tinha sido de 35 mil milhões de afegãos
(moeda). Com os Talibans todos os avanços do país foram destruídos e
regressou-se a um profundo obscurantismo.
2001: a invasão
norte-americana
Exército |
Os EUA ensaiaram para 2014 uma «saída» das suas tropas que
acabou por se traduzir apenas num outro modelo de protectorado, com os Talibans
e outros grupos terroristas a servirem os interesses dos estado-unidenses de
desestabilização regional, incluindo em outros países, como a Síria ou as
ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central que fazem fronteira com a Rússia e a
China.
Em 30 de Setembro de 2014, o Afeganistão, os Estados Unidos
e a NATO assinaram um acordo para justificar formalmente a presença de um
contingente militar limitado no estado da Ásia Central, após a retirada formal
das forças internacionais. Uma força de seguimento de cerca de 12 mil soldados
permaneceu em 2015 em tarefas de treino e apoio. No final desse ano, cerca de
41 mil soldados da NATO permaneciam no Afeganistão lutando contra a revolta de
Talibans, ao lado de soldados e polícias afegãos, com o mandato de missão de
combate da NATO a terminar em Dezembro. Os EUA falharam redondamente o seu
programa de formação de polícias e os afegãos passaram a confiar ainda menos
neles.
Em Agosto passado Trump anunciou ir continuar a guerra no
Afeganistão. Em reacção, um porta-voz dos Talibans condenou essa decisão de
Trump e disse, citado pela France Press, que o grupo terrorista continuaria a
jihad no país, afirmando ainda que o país se tornaria num «cemitério» dos EUA
após a decisão de Trump de enviar mais tropas para o Afeganistão. Na sequência
disso, o secretário de Estado dos EUA, Rex Tillerson, declarou que o movimento
Taliban seria incapaz de alcançar uma vitória militar no Afeganistão mas que,
no entanto, poderia receber um estatuto legal através de negociações…
A nova estratégia dos EUA no Afeganistão inclui a expansão
de forças de autoridade para atacar terroristas. No entanto, Trump disse que os
Estados Unidos não revelariam o número de tropas ou quaisquer futuros planos de
acção militar no Afeganistão.
Os objectivos
geoestratégicos
Esta estratégia tem girado em torno de variantes da chamada
Doutrina Wolfowitz (subsecretário de Estado de George Bush pai), que visou
«prevenir o surgimento de um poder regional ou global que pudesse desafiar o
estatuto hegemónico único por parte dos EUA» e a sua cavalgada até à China,
para garantirem recursos energéticos e minerais que implicariam uma ocupação
logística de uma vasta parte da Eurásia, com governos de fidelidade garantida.
Era um sonho louco, desmentido após as invasões do Iraque e
do Afganistão, de várias «revoluções coloridas», da introdução do «caos» como
melhor forma de gerir o terrorismo, do narcotráfico, da exploração sem regras
de petróleo e riquezas minerais. Evitar um trajecto comercial normal entre
países, para o deixar entregue a bandidos que fazem a administração desses
imensos espaços, destruiu o Afeganistão e outros países, como a Líbia. Mas há
fortes realidades que hoje pesam em sentido diferente desta cavalgada
diabólica.
Dezasseis anos depois da guerra mais longa da sua história,
os EUA no Afeganistão tomam atitudes que dependem mais do que entendem ser a
necessidade de reagirem à derrota na Síria, podendo acrescentar-se-lhe a do
Iraque, onde hoje é significativa a influência da Rússia e do Irão, com a China
mais distanciada, apesar de já estar a fechar contratos com o Afeganistão.
Trump pode estar a transformar esta guerra «em aberto» desde
2001 numa guerra em termos qualitativos e quantitativos muito diferentes da dos
seus antecessores na Casa Branca. Mas está limitado, pese embora a pressão do
Pentágono para o aventureirismo sem medir consequências.A CIA, os terroristas e o controlo da heroína
A economia afegã de narcóticos foi um projecto
cuidadosamente preparado pela CIA, apoiado pela política externa dos EUA e intimamente
relacionado com as operações secretas da CIA na região, desde a guerra contra
os soviéticos.
Conforme revelado nos escândalos Irão-Contra e Bank of
Commerce e Credit International (BCCI), as operações secretas da CIA em apoio
aos Mujahideen afegãos foram financiadas através da lavagem de dinheiro da
droga. O «dinheiro sujo» foi reciclado - através de várias instituições
bancárias (no Médio Oriente), bem como através de empresas anónimas da CIA, com
«dinheiro encoberto» usado para financiar vários grupos insurgentes durante a
guerra contra os soviéticos.
O estudo do investigador Alfred McCoy confirmou que, depois
da operação secreta da CIA no Afeganistão em 1979, «as fronteiras do Paquistão
e o Afeganistão tornaram-se o maior produtor de heroína do mundo, fornecendo
60% da procura dos EUA. No Paquistão, a população viciada em heroína passou de
quase zero em 1979 para 1,2 milhões em 1985, um aumento muito mais acentuado do
que em qualquer outra nação».
E que «os activos da CIA controlaram novamente esse comércio
de heroína. À medida que os guerrilheiros Mujahideen ocuparam território dentro
do Afeganistão, pediram que os camponeses plantassem o ópio como um
"imposto revolucionário". Em toda a fronteira no Paquistão, líderes
afegãos e grupos de bandidos locais, sob a protecção dos serviços secretos do
Paquistão, faziam funcionar centenas de laboratórios de heroína. Durante esta
década de 1979 a 1989 de tráfico aberto de drogas, a Agência de Controle de
Drogas (DEA) dos EUA em Islamabad não levantou processos ou fez prisões».
Continua McCoy: «funcionários dos EUA recusaram-se a
investigar acusações de heroína por parte de seus aliados afegãos porque a
política de narcóticos dos EUA no Afeganistão foi subordinada à guerra contra a
influência soviética. Em 1995, o ex-diretor da CIA em operação no Afeganistão,
Charles Cogan, admitiu que a CIA realmente sacrificou a guerra contra as drogas
para fazer a Guerra Fria.»
As vastas reservas de minerais e gás natural do Afeganistão:
a cereja em cima do bolo que os afegãos estão impedidos de comer
De acordo com um relatório conjunto do Pentágono, do U.S.
Geological Survey (USGS) e a USAID, revelaram-se no Afeganistão em 2010
reservas de minerais «anteriormente desconhecidas» e inexploradas, estimadas na
ordem dos mil milhões de dólares («EUA identificam grandes riquezas minerais no
Afeganistão», New York Times, 14/06/2010; veja-se também a BBC, 14/06/2010):
«os depósitos anteriormente desconhecidos - incluindo grandes veias de ferro,
cobre, cobalto, ouro e metais para industrias críticos como o lítio - são tão
grandes e incluem tantos minerais que são essenciais para a indústria moderna,
que o Afeganistão poderia eventualmente ser transformado num dos mais
importantes centros mineiros mundiais, acreditam os funcionários dos Estados
Unidos.»
Um memorando interno do Pentágono, por exemplo, afirma que o
Afeganistão poderia tornar-se a «Arábia Saudita do lítio», uma matéria-prima
chave na fabricação de baterias para laptops e blackberrys.
A vasta escala da riqueza mineral do Afeganistão foi
descoberta por uma pequena equipa de funcionários do Pentágono e geólogos
americanos. O governo afegão e o presidente Hamid Karzai foram posteriormente
informados, segundo afirmaram autoridades americanas.
Embora possa levar muitos anos para desenvolver uma
indústria de mineração, o potencial é tão grande que funcionários e executivos
da indústria acreditam que isso poderia atrair investimentos pesados mesmo
antes de as minas se tornarem lucrativas, proporcionando a possibilidade de
empregos que acabassem com o estado de guerra.
O valor dos depósitos minerais recém-descobertos diminui o
peso relativo da economia de guerra do Afeganistão, baseada em grande parte na
produção de ópio e tráfico de narcóticos, e poderá abrir perspectivas para uma
economia livre dessa actividade criminosa.
Originalmente publicado em www.abrilabril.pt
Muito embora com modos e intensidades diferentes é só no Afeganistão?
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