Se visitarmos Nova Iorque,
guiados por uma agência de turismo, podemos, depois da Estátua da Liberdade,
deslocar-nos em Manhattan, ao Times Square ao Central Park, passando pelo
Memorial e museu do 11 de Setembro, pela Wall Street, pelo Empire State
Building, pelo edifício das Nações Unidas, pelos quarteirões recheados das
grandes marcas, ou o Centro Rockfeller. Outra opção é juntar-lhe visitas a
bairros mais pobres onde as luzes da ribalta já não brilham – O Harlem, o
Bronx, Brooklyn... Essa é reveladora de
profundas divisões sociais e diferentes formas de procurar sobreviver.
Outra dessas formas, menos conhecida, é a que percorre as páginas do livro Nomadland,
da jornalista norte-americana Jessica Bruder (1), em que a cineasta chinesa Chloé
Zhao se baseou para realizar o filme com o mesmo nome, que chegou hoje às salas
de cinema do nosso país, já premiado em países europeus, contando agora com seis
nomeações a Óscares de Hollywood .
Segundo a autora, dos campos de beterraba da Dakota do Norte aos acampamentos da Floresta Nacional da Califórnia e ao programa CamperForce da Amazon no Texas, os patrões descobriram um novo pool de mão-de-obra de baixo custo, composto em grande parte por americanos idosos, mas temporários. A pandemia levou ao despejo de muitas dezenas de milhares de pessoas que deixaram de ter rendimento para pagar as rendas. Aos despejados juntaram-se muitos outros, que foram descobrindo que a Previdência Social é insuficiente, muitas vezes submersa em hipotecas, e que foram para a estrada às dezenas de milhares em RVs (veículos recreativos), trailers de viagem e furgões (vans) de último modelo, formando uma comunidade crescente de nómadas, que vivem a tempo inteiro na estrada. Procuram trabalhos ou biscates, acorrem às necessidades de trabalho sazonal, de um biscate. São trabalhadores migrantes que se autodenominam "workampers" e que venceram o medo de serem assaltados enquanto dormem nas viaturas, quando isolados. Mas que podem agrupar-se em parques de estacionamento a perder de vista, equipados de infraestruturas para a higiene pessoal e refeições. São milhares.
Vêm das camadas altas e médias, mas são pobres e fazem parte dos 40
milhões de norte-americanos que vivem abaixo do limiar da pobreza. E onde estão
também os 117 milhões de mais baixos salários, que não se alteraram desde 1970.
O processo de pauperização dos
brancos vinha de trás, com expressões semelhantes às características da dos
afro-americanos – taxas de desemprego a subirem muito, maiores taxas de
nascimento fora dos casamentos, maiores taxas de mortalidade e de dependência
de opiáceos. Há dois séculos que estes deserdados são remetidos para uma
espécie de camp o de esquecimento, catalogado por “white trash” (lixo
branco).
Esta abordagem recente no Nomadland destes nómadas dos nossos dias tem uma assinalável semelhança om as Vinhas da Ira, de John Steinbeck. Passado durante a grande depressão, o romance centra-se nos Joads, uma família pobre de rendeiros expulsos da sua quinta no Oklahoma pela seca, por dificuldades económicas, por mudanças na atividade agrícola e pela execução de dívidas pelos bancos forçando o abandono pelos rendeiros do seu modo de vida. Devido à sua situação desesperada, e em parte porque estavam no meio do Dust Bowl (tempestades de pó), os Joads foram para a Califórnia. Com milhares de outros "Okies", procuraram emprego, terra, dignidade e um futuro.
Nos EUA ainda não existe um programa oficial de erradicação da pobreza
extrema como o que foi concluído este ano na China.
Mais de meio século depois do
presidente Lyndon B. Johnson ter declarado, em 1964, "guerra incondicional
à pobreza", os EUA ainda não descobriram como a vencer.
Assim, é para cada um de nós um
dos grandes paradoxos dos nossos tempos: os Estados Unidos, país mais rico do
mundo, têm alguns dos piores índices de pobreza no grupo dos países
desenvolvidos.
O país teve, desde então,
conquistas surpreendentes, como chegar à Lua ou gerir a internet. Mas, nesse
período, conseguiu apenas uma redução no índice de pobreza, que caiu de 19%
para cerca de 12%.
Isso significa que, hoje, quase
40 milhões de americanos vivem abaixo da linha oficial de pobreza. Juntando os
pobres que ainda estão acima dessa linha, são mais de 140 milhões de pessoas que são pobres ou vivem com rendimento
insuficiente para pagar as suas contas, o que representa 43% da população do
total do país, considerado um dos mais ricos do mundo.
O problema é muito maior e mais
antigo do que se vê na atual pandemia do novo coronavírus, que também vem
revelando o agravamento das questões sociais do país — os EUA têm o maior
número de casos de covid-19 no mundo e agora enfrentam os piores níveis de
desemprego desde a Grande Depressão de 1930.
Noutro pontos do globo a pobreza
tem sido reduzida lentamente. No Sul da
Ásia em 1990, cerca de 500 mil milhões de pessoas viviam na pobreza.
Através da implementação de um programa efetivo de redução da pobreza que foi
auxiliado por condições económicas favoráveis, a população de pobres no Sul da
Ásia foi reduzida para 216 milhões de
pessoas em 2015. Não apenas com subsídios, mas com formação e criação de
situações de trabalho produtivo.
O abismo entre ricos e pobres nos
EUA só se tem aprofundado. Apesar do
rendimento das pessoas ter crescido nas últimas quatro décadas, o mesmo
aconteceu, porém, com a diferença entre os mais ricos e os mais pobres. De
acordo com o último Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa de
Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD) "As desigualdades no rendimento
aumentaram mais nos Estados Unidos do que em qualquer outro país desenvolvido
desde 1980".
Segundo dados de países da OCDE
de 2019, os EUA são o 11º país com
expectativa mais baixa de vida.
O país mais rico do mundo ocupa o
quinto lugar entre as nações da OCDE com maior mortalidade infantil.
Depois do Chile, do México e da Turquia, os EUA são o quarto país com maior nível de desigualdadede rendimento, segundo dados publicados pela OCDE, usando um índice de Gini elaborado pela própria organização (diferindo, portanto, do Gini oficial de cada país).
Os Estados Unidos são um país com
muitos recursos econômicos, mas, paradoxalmente, ocupam o primeiro lugar no
índice de pobreza de rendimento usado
pela OCDE.
Num dos indicadores mais
utilizados no âmbito internacional para comparar o rendimento escolar
entre países, a avaliação Pisa de matemática, os EUA não aparecem bem
posicionados. O país é o sétimo entre aqueles com pior resultado.
Nathan Driskell, diretor-associado
de análise de políticas e desenvolvimento do Centro Nacional de Educação e
Economia (NCEE, na sigla em inglês), afirmou à BBC News que em alguns casos o
desempenho dos estudantes chega a figurar dois ou três anos atrás de seus pares
de outros países.
Como autoproclamados líderes na
defesa dos direitos humanos, os Estados Unidos têm estado na vanguarda da
condenação do que os seus dirigentes consideram ser abusos dos direitos humanos
no reso do mundo. No entanto, o sofrimento humano que se apresenta internamente
muitas vezes não é suficientemente discutido. Se o presidente Joe Biden pretende liderar pelo exemplo, ele precisará
não apenas abordar, mas erradicar questões que estão profundamente enraizadas na
sociedade e - cada vez mais - no sistema
político dos EUA.
O racismo continua a ser um dos principais problemas do país e
continua a aparecer em muitas formas. O assassinato de George Floyd no final de
maio de 2020 mais uma vez evidenciou sérias queixas contra as autoridades
policiais norte-americanas. Ainda assim, a violência policial excessiva é
apenas um dos muitos problemas enfrentados pela aplicação da lei americana.
Joe Biden está perfeitamente ciente desta injustiça, e criou a expectativa de poder ser o presidente que pode quebrar a barreira racial.
Mas não são apenas os
afro-americanos que são frequentemente maltratados nos Estados Unidos. Os requerentes na fronteira sul de asilo nos
EUA, em particular, tiveram seus direitos humanos violados durante o antigo
governo de Donald Trump.
Os refugiados são frequentemente
separados de suas famílias - e de seus filhos - e vivem em condições que as
Nações Unidas criticaram como potencialmente violadoras do direito
internacional. Estas condições deviam ser inaceitáveis para um país em cuja
Estátua da Liberdade está escrito o poema: “Venham a mim as multidões exaustas,
pobres e confusas ansiosas pela liberdade. Venham a mim os desabrigados, os que
estão sob a tempestade... Eu guio-os com a minha tocha” (3).
Quando os desordeiros de Hong
Kong invadiram o Conselho Legislativo e tentaram espalhar a destruição na
cidade, Nancy Pelosi, a presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, disse
que era "um belo espetáculo de se ver". Quando aconteceu nos EUA, com
o assalto ao Capitólio, ela chamou-lhe "terrorismo doméstico".
A hipocrisia e a duplicidade de critérios na avaliação das situações
concretas susceptíveis de por em risco direitos humanos já tem mais de cem anos
nos EUA. Podem deitar para o lixo esse disco já tão riscado.
(1) Entre nós ainda não foi traduzido. A FNAC tem à venda a versão original.
(2) Em 29/12/2020.
(3) Da poetisa Emma Lazarus, 1875.
Benvindo! Abraço.
ResponderEliminarAbílio