Introdução
As administrações norte-americanas passaram, no confronto com a Rússia e a China a partir dos anos oitenta, a atribuir especial ênfase à crítica a invocadas violações dos direitos humanos nesses dois países. Intervenções de origens diversas têm-se concentrado de tal maneira que seria difícil não lhe chamar campanha orquestrada. E não lhe chamem teoria de conspiração porque a verdade está diante dos nossos olhos.
Em matéria de direitos humanos, a Rússia e a China têm
consagrado direitos reais mais substantivos que os EUA apregoam. As comparações
estatísticas, com indicadores mensuráveis e internacionalmente aceites, são
muito claras. Mais claras ainda são com as considerações, bem mais humanas, dos
valores que presidem nesses países a tudo que é feito na economia e em todos os
sectores de actividade. E ter eu reservas em relação a alguns aspectos das
políticas desses dois países não contribui para desfocar estas considerações.
Os EUA e seus «aliados» não se limitam a discutir ideias ou
valores. Recorrem a bloqueios, sanções, ingerência nos assuntos internos de
outros países e formação de quadros para agirem como factores de
desestabilização, e à criação de grupos preparados para actos terroristas.
Saúde para alguns, não para todos
Por estarmos neste longo período de combate contra a
Covid-19, o sistema de saúde surge naturalmente como garantia de um dos mais
importantes direitos humanos – o acesso a cuidados de saúde.
No início do século XX, o presidente norte-americano
Theodore Roosevelt tentou implementar um sistema de saúde assegurado pelo
governo para todos os cidadãos, isto é, um sistema público. No entanto, foi
derrotado por políticos dos dois principais partidos: Republicano e Democrata.
Desde então, instituições privadas são responsáveis pelos convénios médicos.
Outros, de «parcerias» público-privadas e hospitais públicos, são financiados
pelo estado. Mas só podem aceder a eles quem tem um contrato com uma seguradora
para lhe cobrir as despesas de saúde.
Com a presente pandemia, ficou evidente que os dirigentes
norte-americanos falharam em toda a linha na responsabilidade da segurança do
seu povo, atingindo um desvaire completo com Trump, na sua ideologia e nas
atitudes negacionistas, que gerou um desastre de grandes proporções de que é
difícil recuperar, devido às muitas deficiências estruturais neste sector.
Com os seus mais de 500 mil mortos, os EUA, com apenas 4% da
população mundial, têm até agora 20% das mortes por COVID-19 de todo o mundo.
A débil estrutura de saúde do país constitui há muito uma
vergonha para os EUA.
Os EUA são o país mais rico do mundo, mas têm um sistema de
saúde péssimo que prejudica a população diariamente e que se repercute numa
crise como esta. O sistema de saúde norte-americano verga os pobres, com
dívidas acrescidas por medicamentos. Até uma coisa tão simples como uma
injecção de insulina custa 275 dólares (cerca de 234 euros), quando o doente
não tem seguro médico.
Ora cerca de 46 milhões de americanos (maiores que 18 anos)
não têm esse seguro (cerca de 15%), não tendo acesso a assistência médica
quando adoecem. Restam de acesso gratuito o Medicaid, que atende alguns tipos
de pobres, de aplicação estadual, e o Medicare, a nível federal que dá
cobertura aos idosos carentes.
Apesar do descalabro, os dirigentes norte-americanos
continuam a defender que o mercado livre resolverá tudo quando tudo o que ele
de facto criou foram empresas de saúde altamente lucrativas e um público
doente.
É sem duvida, o país do mundo que mais gasta em saúde, com
15% do seu PIB, o que equivale a 6 mil dólares por habitante/ano. Apesar de a
OMS colocar os EUA abaixo do quadragésimo lugar entre os países do mundo.
Além disso, os consumidores dos planos de saúde com
frequência são vítimas de atitudes reprováveis por parte das companhias de
seguro. Negar tratamento alegando condições pré-existentes, cobrar taxas extras
para alguns procedimentos (uma mamografia, por exemplo). Ou negar o direito de
acesso ao plano pela existência de um factor de risco para uma determinada
doença.
Todo o ambiente mediático estimula sentimentos não estatais
da sociedade americana. «A assistência médica ficaria igual à dos países
comunistas e vocês deixavam de poder escolher o vosso médico» faz parte das
lengalengas que também conhecemos em Portugal…
Nos Estados Unidos o sistema é um dos mais privatizados do
mundo. A saúde não constitui um direito universal e gratuito, como na nossa
Constituição. Somente aqueles considerados «incapazes de competir no mercado»,
como os muito pobres, inabilitados e os idosos que não conseguiram poupar ao
longo da vida, e os aposentados são objecto de acções específicas dos programas
Medicaid e o Medicare, com referimos atrás. A população inserida no mercado
formal de trabalho tem acesso a sistemas de seguro privado contratado pelas
empresas.
Por tudo isso, embora ofereça a maior percentagem do PIB em
saúde e nela tenha o maior gasto per
capita, os EUA executam apenas 44,6% dos seus gastos em saúde directamente
pelo sector público, enquanto a média observada por outros países do mundo
desenvolvido, como Reino Unido e França, por exemplo, é de 74% dessas despesas.
O resultado é a maior taxa de mortalidade infantil (6,37 por mil) entre os
países desenvolvidos, enquanto em Portugal é 3,3, é de 5,0 no Reino Unido, 4,6
no Canadá e 3,4 na França. Os EUA apresentam ainda a menor média de expectativa
de vida ao nascer: 77,2 anos (em Portugal é 80,9, no Canadá 79,2, na França é
78,5, no Reino Unido é 77,1 anos).
Um sistema judicial que criminaliza
as minorias e os pobres
O sistema judicial dos EUA tem a maior taxa de
encarceramento do mundo, mais de 700 pessoas por 100.000 habitantes. Isto é
várias vezes a taxa de pessoas encarceradas em qualquer outro país.
Os negros e hispânicos, que são cerca de 30% da população
masculina americana, representam 60% dos presidiários. Esta discrepância é o
indicador principal do racismo sistémico que permeia o sistema de justiça dos
EUA, ponto de partida para muito trabalho sociológico.
Antes de a legislação «endurecer o crime» aprovada nos
níveis federal e estadual nas décadas de 1970 e 1980, as taxas de
encarceramento nos EUA não eram muito diferentes das de qualquer outro país –
cerca de 100 por 100.000.
Foi a histeria racista em torno do uso epidémico de «crack» em comunidades minoritárias,
muitas vezes estimulado pela própria polícia, que desencadeou a «guerra às
drogas» e a escalada do número de pessoas, principalmente de minorias,
condenadas e enviadas para a prisão. O efeito da «guerra às drogas» nas
comunidades minoritárias foi a criminalização de amplos sectores da sua
juventude, resultando no seu encarceramento em massa e na sua estigmatização ao
longo da vida. Em vez de oferecer às minorias oportunidades de emprego, saúde
adequada e educação, elas receberam pena de prisão.
Muitos acusados de um crime são mantidos na prisão por
longos períodos antes do julgamento, pois não podem pagar a fiança. Além disso,
muitas pessoas recebem sentenças de prisão prolongadas por crimes menores. Há
muitos casos de presidiários cumprindo sentenças de décadas ou até prisão
perpétua meramente por furto em lojas.
Muitas prisões dos EUA foram privatizadas, incentivando o
armazenamento de prisioneiros para o lucro.
Uma vez libertados da prisão, os presidiários terão extrema
dificuldade em encontrar emprego, moradia, saúde ou acesso à educação, pois não
se qualificam mais para receber assistência. Isso leva a altas taxas de
reincidência. O resultado é o desmembramento de comunidades e famílias e uma
queda na pobreza e no crime. Por causa da destruição dos laços comunitários e
familiares provocada pelo encarceramento em massa, as mães solteiras se
tornaram a norma entre as pessoas de cor e milhões de crianças foram colocadas
em um orfanato.
O sistema judicial dos EUA perpetua o alto grau de
desigualdade racial e étnica na sociedade dos EUA e tem efeitos particularmente
devastadores nas comunidades de cor. O encarceramento em massa de pessoas de
cor leva à destruição de comunidades e famílias. O afunilamento dos pobres,
principalmente das minorias, para as prisões privatizadas com fins lucrativos
já foi chamado «Complexo Industrial Prisional» e o grande número de jovens
carentes na prisão foi chamado «Canal da Escola para a Prisão». Milhões de
vidas foram destruídas pelas iniquidades no sistema judicial dos EUA, que se
agravam ao privar aqueles que foram libertados da prisão, de empregos, moradia,
saúde e educação necessários para viver uma vida segura e produtiva. Mas os EUA
entendem que são os campos de reeducação noutros países – com formação
profissional, para uma reinserção profissional que combata o crime e dignifique
o valor social nessas saídas profissionais – os violadores de direitos
humanos!...
O sistema judicial e penal corrupto dos EUA e a política de
encarceramento em massa resultam em graves violações dos direitos humanos que
devem ser condenadas por todas as pessoas que amam a justiça.
A falta de representatividade do
sistema político
Um outro caso de estudo, entretanto já estudado por muitos
investigadores sociais, foi como o sistema político não representa há muito a
opinião dos eleitores, não satisfaz protestos e que até espalhou urbi et orbi as cenas do assalto ao
Capitólio, expressão do «caos democrático», como lhe chamaram alguns.
O sistema eleitoral para a formação dos órgãos de soberania
não é democrático, torna sistemático o afastamento de diferentes candidaturas,
apurando apenas dois dos candidatos. Todas as outras pessoas e candidaturas não
contribuem para esse apuramento. Os eleitores ou optam pela abstenção ou voto
nulo ou aceitam essa bipolarização institucionalizada. E como a bipolarização
não permite vislumbrar as diferenças entre republicanos e democratas, a
representação de boa parte dos cidadãos gorou-se, e ficou como marginal a todo
o processo eleitoral. Trump não correspondeu apenas aos interesses de grandes
grupos económicos dos EUA. Criou uma vaga de fundo dos que combatiam o sistema
para fazer passar pela sua pessoa e pelo seu carisma a resolução dos problemas.
Este é o populismo que também o levou a conceber e estimular o assalto ao
Capitólio.
O que se passa com a
América é isto. Que mais poderá acontecer? Biden já demonstrou não ter pernas
para as necessárias pedaladas.
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