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terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Duas cimeiras e os riscos para a paz no Médio Oriente, por António Abreu

 A mentira revelada

Nos dias 13 e 14, os EUA e Israel, com o apoio do anfitrião polaco, montaram uma operação que visava retirar os EUA do isolamento em que colocara a sua diplomacia no Médio Oriente na sequência de se ter retirado, em maio de 2018, do acordo nuclear com o Irão. A ausência do areópago dos estados-membros da EU, à exceção da Inglaterra, da Rússia, Turquia, Catar, Líbano, dos rebeldes houtis do Iémen e da Autoridade Palestiniana, e a responsável da política externa da UE, Federica Mogherini, do areópago e as declarações catastróficas de Benjamin Nethanyahu antes dele ter início. Para já, Gordon Sondland, o embaixador dos EUA na UE, afirmou que a não comparência dos líderes europeus teria sido “um ato inútil".
A ausência dos estados europeus, deveu-se à mentirola anterior dos EUA, logo retificada, de que não pretendiam uma mudança de regime em Teerão, à falta de convite ao Irão para participar, e à existência de uma agenda escondida sobre os objetivos da conferência, que se chamava “Futuro da Paz e da Segurança no Médio-Oriente”, mas que pretendia, de facto, prejudicar a vontade da UE em preservar esse acordo com o Irão.
Israel tirou o véu quando na véspera, Nethanyahu avançou que a reunião tinha como objetivo consolidar “o interesse comum da guerra contra o Irão”. E não terá sido, por acaso, “coincidência” que no primeiro dia da conferência em Varsóvia, o país tenha sofrido o pior ataque terrorista em anos quando 27 de seu Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica foram mortos em um ataque suicida reivindicado por um grupo jihadista. Teerã afirmou que o grupo terrorista tinha ligações com " serviços de inteligência estrangeiros ". Certo é que no início da semana passada, o Irão celebrou o 40º aniversário da sua revolução islâmica. O aniversário classificado por Trump como " 40 anos de terror ".  O seu conselheiro de segurança nacional, John Bolton, também enviou uma mensagem à liderança do Irão dizendo que seu tempo acabou. O Netanyahu emitiu um aviso assustador de que o aniversário poderia ser o último. E, no decurso da conferência um outro indefetível de Trump, Rudy Giuliani, pediu abertamente a mudança de regime no Irão. E, à margem da conferência, Giuliani, à margem da conferência, usou também da palavra numa manifestação em Varsóvia organizada pelo exilado iraniano Mujahideen-e Khalq (MEK). O grupo tem estado ligado a ataques terroristas no Irão que visam derrubar o governo de Teerão. Não está claro se o MEK teve algum envolvimento no atentado a bomba desta semana, mas em Varsóvia ao receberem Giuliani, aplaudiram o assassinato dos guardas iranianos.
A escolha da Polónia como anfitriã do evento não foi feita por acaso. A Polónia vem adquirindo de Washington sistemas de mísseis dos EUA e pediram para que os americanos construam uma nova base militar no país, que Varsóvia propõe chamar de "Fort Trump". Um ex-diplomata polaco reclamou que o governo de Varsóvia nem sequer teve participação na agenda da cimeira, afirmando que esta fora dominada por Washington, Israel e Arábia Saudita.
No período que antecedeu a invasão do Iraque, em 2003, o então secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, ridicularizou a oposição da Alemanha e da França à guerra criminosa de agressão, referindo-se a esses países como "velha Europa" e exaltando o apoio ao imperialismo norte-americano. de uma “nova Europa”, composta pelos regimes do Leste Europeu e, principalmente, pela Polônia.

O eixo militar judaico-sunita

Um outro, o jornalista Thierry Meyssan, especialista das questões do Médio Oriente acha que os EUA pretendem “criar uma aliança militar judaico-sunita contra os xiitas”, que alguma imprensa tem chamado “a NATO árabe”. E refere que dias antes, a 10 de janeiro, durante uma conferência na Universidade americana do Cairo, o Secretário de Estado Mike Pompeo tinha identificado como objetivos para a região:
- Opor-se ao «regime iraniano» e aos «seus mandatários»;
- Pôr em ação uma Aliança estratégica judaico-sunita contra o Irão xiita (1).
Para ele esta confessionalização da política externa dos EUA deve ser conjugada com o retorno de Elliott Abrams (2) ao Departamento de Estado após 30 anos de ausência. Este trotskista, que se juntou em 1980 ao Presidente republicano Reagan, é um dos fundadores do movimento neoconservador. Ele é também um dos iniciadores da teopolítica, essa escola de pensamento aliando judeus e cristãos sionistas segundo quem a Terra só ficará em paz quando for dotada de um governo mundial sediado em Jerusalém (3).
Para Abrams e os trotskistas da revista “American Jewish Commitee, Commentary”, havia que lutar ao mesmo tempo contra a URSS, para prosseguir a luta de Leon Trotsky contra José Estaline, e montar um Golpe de Estado mundial. Abrams participou, na criação do Instituto da Paz dos EUA e na “National Endowment for Democracy” (NED), bem nossa conhecida pelas vultosas dotações financeiras que recolhe do Orçamento do Estado com que paga a todo o tipo de mercenários e “benfeitores” para organizarem revoluções coloridas, missões humanitárias e outras também “beneméritas”. A este grupo se deve a invenção da teopolítica, como uma justificação religiosa para uma tomada de poder mundial.
Os neocons são também conhecidos por likudnics que expressa a sua vinculação ao Likud israelita de Nethanyahu.
A obsessão do imperialismo norte-americano com o Irão deve-se essencialmente a nunca ter perdoado as massas de trabalhadores iranianos e pobres pela revolução de 1979 que derrubou a ditadura do Xá apoiada pelos EUA, o eixo da dominação dos EUA sobre a região. Embora essa revolução tenha sido usurpada pelo regime burocrático-teocrático estabelecido sob o ayatollah Khomeini, Washington recusou-se a aceitar qualquer mudança de regime, optando pela reimposição de uma ditadura fantoche dos EUA do tipo da do xá.

As debilidades do Irão

Há uma contradição entre o Irão em considerar Israel e a Arábia Saudita, quando antes e hoje existem entendimentos com esses países.
Há divisões entre os principais políticos: o Guia da Revolução, o Ayatollah Komeini, o Presidente da República xeque Rohani, “pai” do acordo nuclear e o antigo Presidente Ahmadinejad, com residência vigiada depois da prisão de vários dos seus colaboradores.
Rohani assinou o acordo nuclear com Obama, mas as sanções nunca foram levantadas e a economia iraniana entrou em colapso, com a agravante de Trump o ter rasgado.
A recusa de Rohani em prolongar apoios à Palestina, ao Hezbollah, e à Síria, retiraram um apoio importante de um país-chave a causas justas que careciam desse apoio, deixando os Guardas da Revolução a protegerem apenas os xiitas na Síria.
Os entendimentos entre o Irão, a Rússia e a Turquia podem já ter conhecido melhores dias.
As dificuldades económicas levaram à dificuldade em pagar as suas milícias no Iraque e o Hezbollah.
A saída da Rússia da intervenção militar direta na Síria tem facilitado os bombardeamentos contra forças iranianas e quanto à defesa da Síria, Moscovo ofereceu ao país mísseis S-300 para o país garantir a sua defesa anti-aérea.
A maioria democrata na Câmara dos Representantes não vai ajudar as dificuldades de Rohani.
A situação no Levante permanece complicada e não resolvida devido ao ceticismo em relação a uma retirada completa dos EUA do país e à falta de confiança entre os parceiros.
A Rússia parece pronta para tolerar temporariamente a presença turca na Síria onde se tem mantido há muito com o argumento de se proteger do Hezbollah.
O Irão, um parceiro próximo da Turquia, gostaria que as forças sírias assumissem o controle de todo o território, mas dá prioridade à partida final dos EUA.
Damasco e Teerão compartilham o mesmo medo de ver tropas turcas na Síria por um longo tempo.
Essas diferenças limitaram o sucesso da cimeira de Sochi, que se realizou ao mesmo tempo, e reunindo a Rússia, o Irão e a Turquia.
De facto, uma vez que o destino de Idlib e do nordeste da Síria ainda é desconhecido e ainda não foi acordado pelos aliados até agora. Não se pode esperar uma solução perfeita porque é claro que há uma falta de confiança, principalmente no papel e na presença da Turquia na Síria.
Independentemente desta observação, os curdos são, sempre e de novo, os maiores perdedores.

EUA e Europa

E quais foram as reações dos seus “aliados europeus” ao serem apontados por não seguirem a linha dos EUA em relação ao Irão. O vice-presidente dos EUA exigiu que a Alemanha, a França e o Reino Unido, todos signatários do acordo nuclear com o Irão de 2015, sigam a liderança de Washington em desmantelar o acordo e impor um bloqueio económico que equivaleria a um ato de guerra.
Pence acusou "alguns dos principais parceiros europeus" dos EUA de tentarem "quebrar as sanções americanas contra o regime revolucionário assassino do Irão". Referia-se a um mecanismo financeiro introduzido pelo Reino Unido, Alemanha e França para permitir a troca de bens entre empresas europeias e o Irã. sem transações financeiras diretas ou o uso do dólar americano para evitar as sanções extraterritoriais dos EUA.
O vice-presidente dos EUA exigiu que as potências europeias "fiquem connosco" para liquidar o acordo nuclear e, presumivelmente, para se prepararem para a guerra com o Irão. Reconhecendo que o Irão estava a agir em conformidade com o acordo nuclear, Pence declarou que a questão não era a conformidade, mas a indesejabilidade do “negócio” em si mesmo. E não deixou de dizer que qualquer tentativa de escapar do regime de sanções dos EUA "criaria ainda mais distância entre a Europa e os EUA".
Bill Van Auken, do world socialista website, recordou-nos nestes dias que “no período que antecedeu a invasão do Iraque, em 2003, o então secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, ridicularizou a oposição da Alemanha e da França à guerra criminosa de agressão, referindo-se a esses países como "velha Europa" e exaltando o apoio ao imperialismo norte-americano de uma “nova Europa”, composta pelos regimes do Leste Europeu e, principalmente, pela Polónia.
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As intenções enunciadas na Conferência de Varsóvia da semana passada, mesmo que denunciadas na contradição entre as suas belas intenções e a realidade da guerra enunciada contra o Irão, mesmo com as reservas da UE, constituem um pesado risco para a paz.
A frase de Mike Pence, repetida até à exaustão, que caracterizava o Irão como "principal patrocinador estatal do terrorismo", foi apresentada sem factos nem provas. Os EUA nunca deveriam emitir tal declaração porque especialmente os seus dois últimos governos aplicaram milhares de milhões de dólares no financiamento de guerras terroristas por milícias ligadas à Al Qaeda para provocar mudanças de regime na Líbia e na Síria.
Quanto ao “estado que semeia o maior dano e a maior discórdia”, alguém pode afirmar com franqueza que Washington, que travou um quarto de século de guerras intermináveis e ruinosas na região, arrasando sociedades inteiras e deixando milhões de mortos, mutilados e deslocados, tem concorrentes à sua altura para lhe arrebatarem esse título?
O imperialismo norte-americano está determinado a afirmar sua hegemonia sobre o Irão, o Médio Oriente, a Ásia Central e a Venezuela, a fim de estabelecer seu controle incontestado sobre todas as reservas de energia do mundo, dando-lhe a capacidade de negar acesso a sua principal rival global, a China.

(1) “Observações de Mike Pompeo na American University do Cairo”, Rede Voltaire, 10 janeiro, 2019.
(2) «Elliott Abrams, o "gladiador" convertido à "teopolítica"», Thierry Meyssan, Rede Voltaire, 14 fevereiro 2005.
(3) «Cimeira histórica para selar a Aliança dos guerreiros de Deus», Rede Voltaire, 17 outubro 2003

Versão actualizada da publicada originalmente em www.abrilabril.pt, em 18/2/19

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