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sábado, 28 de dezembro de 2019

Bom fim de semana, por Jorge



What you can imagine depends on what you know.”

"O que conseguimos imaginar depende daquilo que conhecemos."


Daniel Dennet 
filósofo americano, n.1942)




sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Os EUA e o desaire na segunda guerra do Afeganistão, por António Abreu

Os EUA e o desaire na guerra do Afeganistão  No passado dia 9 de dezembro, o Washington Post revelou um conjunto de documentos confidenciais do governo norte-americano que revela que  as mais altas autoridades deste país mentiram sobre a guerra no Afeganistão durante a campanha que já durou 18 anos, fazendo declarações positivas que sabiam serem falsas e escondendo evidências inconfundíveis de que a guerra não era susceptível de ser ganha. Estes elementos referem-se à segunda guerra no país, depois da primeira guerra (1). 

Os documentos foram produzidos por um projeto federal que examinava as falhas fundamentais do conflito armado mais longo da história dos EUA.  Incluem mais de 2.000 páginas de notas de entrevistas inéditas com pessoas que desempenharam um papel directo na guerra, de generais e diplomatas mas também trabalhadores auxiliares e autoridades afegãs.  

O jornal revela que o governo dos EUA tentou proteger as identidades da grande maioria dos entrevistados para o projeto e ocultar quase todas as suas observações. 

O Post ganhou a causa para serem libertados os documentos após uma batalha legal de três anos.

 "Faltava-nos uma compreensão fundamental do Afeganistão - não sabíamos o que estávamos a fazer", disse em 2015 Douglas Lute, um general do Exército de três estrelas - que serviu como pivot da Casa Branca na guerra conduzida neste país durante as administrações de Bush e Obama. E acrescentou: “O que estamos a fazer aqui? Não tínhamos a menor noção do que estávamos a fazer. " E Lute acrescentava “Se o povo americano soubesse a dimensão dessa disfunção com a perda de 2.400 vidas ”, referindo-se apenas as perdas de militares norte-americanos, culpando, por isso os colapsos burocráticos entre o Congresso, o Pentágono e o Departamento de Estado. "Quem poderia dizer que isso foi em vão?" Desde 2001, mais de 775.000 soldados dos EUA foram enviados para o Afeganistão, muitos por várias vezes. Desses, 2.300 morreram lá e 20.589 foram feridos em ação, segundo dados do Departamento de Defesa.  . As entrevistas realizadas no âmbito daquele projecto, através de uma extensa variedade de vozes, revelam as principais falhas da guerra que persistem até hoje. Eles ressaltam como três presidentes - George W. Bush, Barack Obama e Donald Trump - e os seus comandantes militares foram incapazes de cumprir as suas promessas relativas à permanência no Afeganistão. 

Com a maioria dos entrevistados a pensar que as suas declarações não se tornariam públicas, as autoridades americanas reconheceram que as suas estratégias de combate tinham falido e que Washington estavam a desperdiçar enormes somas de dinheiro tentando reconstruir o Afeganistão num país moderno. 
As entrevistas também destacam as tentativas frustradas do governo dos EUA de reduzir a corrupção descontrolada, formar um exército afegão e uma força policial competentes e acabar com o próspero comércio de ópio do Afeganistão.  

O governo dos EUA não realizou uma contabilidade global sobre quanto gastou a guerra no Afeganistão, mas os custos são surpreendentes. Desde 2001, o Departamento de Defesa, o Departamento de Estado e a Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (2) gastaram ou apropriaram-se de entre 934 mil milhões e 978 mil milhões de dólares, de acordo com uma estimativa corrigida pela inflação calculada por Neta Crawford, professora de ciências políticas e codiretora dos custos de Projeto de Guerra na Universidade Brown. Esses números não incluem o dinheiro gasto por outras agências, como a CIA e o Departamento de Assuntos dos Veteranos que era responsável pelos cuidados médicos aos veteranos feridos. 


“O que recebemos por esse esforço 1 trilião (3) de dólares? O que nos valeu esse 1 trilião? (3)”, perguntou Jeffrey Eggers, aposentado dos Navy SEAL e da Casa Branca de Bush e Obama, aos entrevistadores do governo. E acrescentava: "Após o assassinato de Osama bin Laden, eu disse que Osama provavelmente estaria a rir-se na sua cova aquática, ao olhar o quanto gastamos no Afeganistão"… 
Os documentos também contradizem um longo coro de declarações públicas de presidentes, comandantes militares e diplomatas dos EUA, que garantiam aos americanos, ano após ano, que estavam progredindo no Afeganistão e que valia a pena lutar nesta guerra.

  
(1) A primeira guerra no Afeganistão iniciou-se com os combates de diversos grupos fundamentalistas islâmicos contra o governo saído da revolução de Saur, em 1978, de carácter socialista, com apoio da maior parte das forças armadas e amplo apoio popular. Este governo promoveu um estado laico e moderno, a educação e a emancipação das mulheres, o ensino da língua e das tradições culturais.  As relações de cooperação militar com a União Soviética já se davam com carácter permanente desde 1919, depois da Revolução de Outubro na Rússia. Mas começaram, em efetiva e larga escala, apenas em 1956. Novos acordos foram assinados nos anos 70, com os soviéticos a enviar conselheiros militares e especialistas. A União Soviética financiou várias obras de infraestruturas diversas, deu assistência na construção da Universidade de Cabul, do Instituto Politécnico e também de hospitais, fábricas produtoras de energia e escolas. Nos anos 80, os soviéticos também financiaram a construção de universidades em Blakhe, Herate, Takhar, Nangarhar e Fariyab. Professores russos foram enviados para dar aulas no Afeganistão. Os combatentes mujahidins, vindos de vários países, tinham as suas bases no território vizinho do Paquistão. Um deles era dirigido pelo saudita Osama Bin Laden que criaria o grupo terrorista Al Qaeda. Os norte-americanos viam o Afeganistão como uma parte integrante da Guerra Fria e a CIA enviou ajuda às forças antissoviéticas através dos serviços de inteligência paquistaneses, num programa chamado Operação Ciclone. Estima-se que entre 850 000 e 1 500 000 afegãos morreram neste conflito. Os militares e agentes do KGB mortos foram cerca de 15 000.   Desde a intervenção a pedido do governo em 1979, os soviéticos concluíram a sua retirada em 1989. Foi a primeira guerra do Afeganistão.  

Os EUA, depois dos ataques às Torres Gémeas em 1 set 2001, lançaram, de imediato um ataque sobre o Iraque, invocando ter este armas de destruição maciça o que se revelou mais tarde ser uma ameaça inventada pelos EUA e seus aliados para “justificar” a agressão. 
Foram duas décadas de guerra, que ainda se mantem hoje com uma tentativa dos talibans reverterem a situação a seu favor e afastar o governo actual. 

(2) A Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional, mais conhecida pelo seu acrónimo em inglês USAID, é um organismo do governo dos Estados Unidos encarregado de distribuir a maior parte da “ajuda externa de carácter civil”, mas que de facto se traduz na entrega a instituições, que são a capa de organizações terroristas ou destinadas a organizar insurreições, de meios e agentes da CIA. Os EUA mantêm uma grande multiplicidade destas organizações em todo o mundo (alguns dos exemplos mais recentes as “insurreições” na Venezuela, Bolívia, Hong-Kong e em bolsas terroristas na Síria). 

(3) O número um seguido de 18 zeros.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Bom fim de semana, por Jorge



"O aprendes a ser feliz con las cosas elementales de la vida, o no serás nunca feliz"

"Ou aprendes a ser feliz com as coisas elementares da vida, ou nunca serás feliz."

Pepe Mujica 
Agricultor, ex-presidente uruguaio, 
n. 1935,

num encontro com jovens em 11/10 deste ano no Colegio Nacional de Buenos Aires.


num encontro com jovens em 11/10 deste ano no Colegio Nacional de Buenos Aires.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Confirma-se quadro sombrio da saúde nos EUA, por António Abreu



Os Estados Unidos, apesar de gastarem mais em assistência médica do que qualquer outro país, registaram uma mortalidade crescente e uma esperança de vida decrescente para pessoas de 25 a 64 anos, que deveriam estar no auge de suas vidas.

Um novo relatório publicado no Journal of the American Medical Association pelos investigadores Steven H. Woolf e Heidi Schoomaker, mostra um quadro sombrio: a esperança de vida geral nos Estados Unidos, que havia aumentado nos últimos 60 anos, caiu em três anos consecutivos. Mas essa não é apenas uma tendência recente. A expectativa de vida dos EUA começou a perder ritmo com outros países na década de 1980 e, em 1998, havia caído para um nível abaixo da esperança de vida média entre os países da OCDE - Organização para Cooperação e Desenvolvimento Económico. Embora a esperança de vida nesses países continue a aumentar, a esperança de vida nos EUA parou de aumentar em 2010 e vem diminuindo desde 2014 (1).





A recente diminuição da esperança de vida nos EUA esteve relacionada, em grande parte, com o aumento da mortalidade por todas as causas entre adultos jovens e de meia-idade, em comparação com outros grupos (bebés, crianças e idosos) para os quais as taxas de mortalidade caíram. Para indivíduos de 25 a 64 anos, as taxas de mortalidade por todas as causas que estavam em declínio desde 2000, atingiram o ponto mais baixo em 2010 e aumentaram a partir de então.

Mas as raízes da crise na expectativa de vida dos EUA já vêm de trás. As taxas de mortalidade na meia-idade para uma variedade de causas específicas (por exemplo, overdoses de medicamentos e doenças hipertensivas) começaram a aumentar mais cedo. Mas isso não se refletiu nas tendências de mortalidade por todas as causas porque foram compensadas por grandes reduções simultâneas na mortalidade das doenças cardíacas isquémicas, cancro, infeção por HIV, lesões em veículos motorizados e outras causas principais de morte.
No entanto, os aumentos nas taxas de mortalidade por causas anteriores a 2010 diminuíram a taxa em que a mortalidade por todas as causas diminuiu (e a expectativa de vida aumentou) e culminou numa reversão.
O resultado final foi que a mortalidade por todas as causas aumentou após 2010 (e a esperança de vida diminuiu depois de 2014).
Os autores do relatório deixam claro que as deficiências no sistema de saúde explicam o aumento da mortalidade por pelo menos algumas condições.

Embora o sistema de saúde dos EUA seja excelente em certos aspectos, os países com maior expectativa de vida superaram os Estados Unidos ao garantirem acesso universal aos cuidados de saúde, removendo os custos como uma barreira ao acesso a esses cuidados.

Transformar radicalmente a maneira como os cuidados de saúde são financiados, como é proposto no Programa de Seguro de Saúde do Medicare for All Act de 2017, ajudaria bastante a reverter o declínio na expectativa de vida nos Estados Unidos. Eliminaria as barreiras financeiras a cuidados de saúde decentes, fornecendo a todos acesso a hospitalização, serviços primários e preventivos, medicamentos prescritos e outros serviços (como saúde bucal, audiologia e serviços de visão) e assim por diante.

Mas o seguro de saúde universal não vai, por si só, resolver o problema nos Estados Unidos. Uma razão, claramente, é que uma das causas da diminuição da esperança de vida é o aumento das mortes por overdose de drogas, iniciadas na década de 1990, que surgiram do próprio sector da saúde americano, com fins lucrativos e privado (2).

A crescente mortalidade e a queda da expectativa de vida entre jovens americanos e de meia-idade foram exacerbadas por outras dimensões do capitalismo americano. Sabemos, por exemplo, que, desde o final da década de 1970, as desigualdades no rendimento aumentaram, superando os níveis noutros países, concomitantemente ao aprofundamento da crise da saúde nos EUA.
Além disso, os mais vulneráveis ​​à nova economia (por exemplo, adultos com educação limitada e homens mais jovens) sofreram os maiores aumentos nas taxas de mortalidade, assim como aqueles que trabalhavam em áreas que sofreram deslocamentos da actividade económica, como nas áreas rurais dos EUA e industriais no centro-oeste. Embora os autores admitam que os vínculos causais não tenham sido firmemente estabelecidos, observaram que "as pressões socioeconómicas e o emprego instável podem explicar alguns dos aumentos observados na mortalidade em várias causas de morte".

Não é apenas uma questão absoluta de rendimento ou de património líquido. Segundo o relatório, as causas do desespero económico podem ser mais "matizadas", decorrentes de "percepções e expectativas frustradas" dentro da classe trabalhadora americana. Qualquer que tenha sido a esperança ligada ao sonho americano, ela foi minada à medida que a desigualdade económica alcançava níveis obscenos e a mobilidade intergeracional diminuía.

Além disso, essas causas potenciais provavelmente não são independentes e podem, juntas e de maneira complexa, moldar os padrões de mortalidade.

Os principais responsáveis, como o tabagismo, abuso de drogas e dietas geradoras de obesidade, são moldados por condições ambientais, sofrimento psicológico e estatuto socioeconómico. As mesmas pressões económicas que forçam os pacientes a renunciar aos cuidados médicos também podem induzir estresse e comportamentos insalubres.
Os principais responsáveis importantes, como o tabagismo, abuso de drogas e dietas geradoras de obesidade, são moldados pelas condições ambientais, pelo sofrimento psicológico e pelo estatuto socioeconómico. As mesmas pressões económicas que forçam os pacientes a renunciar aos cuidados médicos também podem induzir stress e comportamentos insalubres, além de fraturar as comunidades.

Os americanos enfrentam, então, um enorme problema: um sistema económico que, especialmente nas últimas décadas, elevou a mortalidade e diminuiu a esperança de vida dos trabalhadores jovens e de meia idade, um sistema de saúde privado que foi incapaz de cuidar dessas pessoas e, no caso de certas classes de medicamentos, piorou o problema, e um sistema de seguro de saúde que deixou milhões de pessoas sem acesso à assistência médica.

O Medicare for All (seguros de vida para todos) representa uma solução para uma dimensão do problema. Mas não para os outros dois. A menos que e até que o sistema económico dos EUA (incluindo a forma como os cuidados de saúde são prestados) seja radicalmente transformado, os americanos continuarão morrendo jovens demais.



(1) De acordo com o relatório, a expectativa de vida começou a avançar mais lentamente na década de 1980 e atingiu o platô em 2011. A expectativa de vida nos EUA atingiu o pico em 2014 e, posteriormente, diminuiu significativamente por três anos consecutivos, atingindo 78,6 anos em 2017.

(2) Começou com a introdução do OxyContin em 1996. Foi seguido pelo aumento do uso de heroína, geralmente por pacientes que se tornaram viciados em opióides prescritos. E depois foi agravado pelo surgimento de opióides sintéticos potentes, que provocaram um grande aumento nas mortes por overdose depois de 2013 .

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Bom fim de semana, por Jorge

"Un hombre hace lo que puede; 
una mujer hace lo que un hombre no puede."

"Um homem faz o que pode, uma mulher faz o que um homem não pode."

Isabel Allende 
escritora chilena, n.1942

Alexandrópolis, a nova base dos EUA contra a Rússia, por Manlio Dinucci, em il manifesto



 A Arte da Guerra


“Acabei de voltar de Alexandrópolis, uma visita estrategicamente importante que se concentrou nas relações militares excecionais entre os Estados Unidos e a Grécia e no investimento estratégico que o governo dos EUA está a fazer em Alexandrópolis”: declarou, em 16 de setembro, o Embaixador dos EUA na Grécia, Geoffrey Pyatt (nomeado em 2016 pelo Presidente Obama).

O porto de Alexandrópolis, no nordeste da Grécia, confinante com a Turquia e a Bulgária, está localizado no mar Egeu, perto do Estreito de Dardanelos, que, ligando o Mediterrâneo e o Mar Negro ao território turco, constitui uma rota de trânsito marítimo fundamental, sobretudo para Rússia. Qual é a importância geoestratégica deste porto, que Pyatt visitou, juntamente com o Ministro da Defesa grego, Nikolaos Panagiotopoulos, explica a Embaixada dos EUA em Atenas: “O porto de Alexandrópolis, graças à sua localização estratégica e infraestrutura, está bem posicionado para apoiar exercícios militares na região, como demonstrado pelo recente Sabre Guardian 2019 “.
O “investimento estratégico”, que Washington já está a realizar nas infraestruturas portuárias, tem como objetivo tornar Alexandrópolis uma das bases militares americanas mais importantes da região, capaz de bloquear o acesso dos navios russos ao Mediterrâneo. Isto é possível pelas “relações militares excecionais” com a Grécia, que há muito tempo disponibilizam as suas bases militares para os EUA: em particular Larissa, para os drones armados Ripers e Stefanovikio para os caças F-16 e para os helicópteros Apache. Esta última, que será privatizada, será comprada pelos EUA.
O Embaixador Pyatt não esconde os interesses que levam os EUA a reforçar a sua presença militar na Grécia e noutros países da região mediterrânea: “Estamos trabalhando com outros parceiros democráticos da região para rejeitar personagens malignas, como Rússia e China, que têm interesses diferentes dos nossos”, em particular” a Rússia que usa a energia como instrumento da sua influência maléfica”.
Sublinha, assim, a importância assumida pela “geopolítica da energia”, afirmando que “Alexandrópolis tem um papel crucial na ligação da segurança energética e na estabilidade na Europa”. A Trácia Ocidental, a região grega onde o porto está situado, é, de facto, “uma encruzilhada energética para a Europa Central e Oriental”. Para compreender o que o Embaixador significa, basta lançar um olhar à carta geográfica.
A vizinha Trácia Oriental, ou seja a pequena parte europeia da Turquia – é o ponto em que chega, depois de atravessar o Mar Negro, o gasoduto TurkStream vindo da Rússia, na fase final da construção. A partir daqui, através de outro gasoduto, o gás russo deve chegar à Bulgária, à Sérvia e a outros países europeus. É a contramedida da Rússia ao movimento dos Estados Unidos que, com a contribuição decisiva da Comissão Europeia, bloquearam, em 2014, o oleoduto South Stream que deveria levar gás russo para a Itália e de lá, para outros países da UE.

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Bom fim de semana, por Jorge



"Stress is caused by being 'here' 
but wanting to be 'there'."

"O stress é provocado por estarmos aqui, 
mas querermos estar ali."

Eckhart Tolle 
conferencista alemão, residente no Canada, n.1948)

De Olho no Mundo, por Ana Prestes, do Portal Vermelho


  
Correm 10 dias do golpe de Estado na Bolívia que desalojou Evo Morales da presidência, seu vice Alvaro Garcia Linera e todo seu governo. No momento em que escrevo há dados que contabilizam 26 mortos e cerca de 1000 feridos nos enfrentamentos que se deram pós-golpe. Evo, Linera e Montaño (ministra da saúde) estão no México, após oferecimento de asilo político por parte do presidente mexicano Lopez Obrador. Um golpe que se consumou com o financiamento pelos EUA de generais de alta patente, derrubada do sistema de comunicações telefonicas, bloqueio da imprensa, repressão policial, ousadia de um empresário fundamentalista religioso, instrumentalização da OEA e seus providenciais relatórios de “observação eleitoral” e um ex-presidente (Mesa) derrotado nas urnas e ressentido.

Uma das então ministras do governo Evo, Gabriela Montaño, que viajou com Evo para o exílio no México, falou à HispanTV (com sede no Irã) logo no dia do golpe e disse que a derrubada de Morales foi gestada nas entranhas da Polícia Nacional da Bolívia, com um importante grupo de membros das Forças Armadas Bolivianas. Segundo ela, dirigentes da oposição ameaçaram e tentaram dissuadir membros do MAS para em um ato de traição testemunharem contra Evo. Enquanto isso perseguiam membros do governo e familiares de Evo e Linera. Colocavam fogo em suas casas.

O governo brasileiro foi um dos primeiros a reconhecer a senadora Jeanine Añez como presidente interina da Bolívia. No texto da nota do Itamaraty está: “governo brasileiro congratula a senadora Jeanine Añez por assumir constitucionalmente a Presidência da Bolívia e saúda sua determinação de trabalhar pela pacificação do país e pela pronta realização de eleições gerais. O Brasil deseja aprofundar a fraterna amizade com a Bolívia”. Añez se autoproclamou presidente em uma sessão legislativa sem quórum suficiente da Assembleia boliviana.

Os confrontos mais recentes foram em Senkata, em El Alto, nos arredores de uma distribuidora de combustíveis, a Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), bloqueada por manifestantes desde o golpe. A repressão foi duríssima, com ataque aéreo, por helicóptero, e por terra deixando pelo menos 6 bolivianos mortos. A situação de desabastecimento em La Paz é dramática e o governo auto-proclamado de Añez decidiu comprar combustível do Chile e do Peru. Ao mesmo tempo em que se davam os eventos na distribuidora YPFB em Senkata (El Alto), ocorriam confrontos também na zona sul de Cochabamba em uma localidade chamada Sebastián Pagador (zona de migrantes mineiros) e também em Achocaya, entre a cidade de La Paz e El Alto. Ambos com reporte de feridos e falecidos.

Assim como em Senkata, Sebastián Pagador e Achocaya no dia de ontem (19), na última sexta (15) um massacre foi realizado em Sacaba, no departamento de Chapare, com o mesmo método de disparos a partir de helicópteros e deixou pelo menos 9 mortos (todos manifestantes) e um número indefinio de feridos e presos. A repressão se deu quando um grupo de manifestantes leais a Evo iniciou uma marcha em direção à cidade de Cochabamba, a 13 km de Sacaba. Próximo à ponte Hyayllani, policiais de Cochabamba, fizeram um cerco e atacaram os manifestantes.

A capital La Paz também teve sua Praça Murillo cercada por tanques militares desde segunda (18) quando se organizava uma marcha de professores das escolas rurais. Segundo denúncia do próprio Evo por twitter a tentativa era de fechar a Assembleia Legislativa Plurinacional e reprimir camponeses, indígenas, professores, estudantes, mulheres que têm se manifestado pela saída da autoproclamada Añez. Tais manifestantes, entre os quais se encontram inclusive muitas pessoas mais velhas, foram agredidos com ataques de gases químicos. A autodenominada presidente emitiu decreto (número 4078) eximindo de responsabilidade penal os militares que atuam contra as manifestações. O decreto é de sexta (15), mesmo dia em que 9 manifestantes foram mortos em Cochabamba.

O governo argentino de Macri sabia do golpe em curso na Bolívia antes de sua consumação. Seis dias antes daquele 10 de novembro, o golpista Luis Fernando Camacho realizou uma reunião com diplomatas argentinos do consulado de Santa Cruz de la Sierra. Também estavam diplomatas espanhóis. Nesta reunião Camacho pediu asilo no consulado caso o golpe fracassasse. Na reunião se falava do golpe como uma “insubordinação civil”. Na reunião teria sido informado que no mais tardar em 48 horas as Forças Armadas ocupariam o palácio presidencial. A informação foi divulgada pelo meio argentino “El Cohete A La Luna” que teve acesso a uma comunicação entre o consulado e a chancelaria argentina. No relato está informado que os dois cônsules (argentino e espanhol) teriam tentado dissuadir Camacho do que consideravam “uma loucura”.

Durante os dias prévios ao golpe o general Williams Kaliman, comandante das Forças Armadas da Bolívia não se pronunciou sobre a situação de tensão que se agravava. Em sua primeira comunicação disse que “os políticos deveriam resolver”, depois silêncio novamente até que por fim sugeriu a renúncia do presidente. Com a autoproclamação de Añez, se retirou, pediu aposentadoria e foi viver nos EUA. Kaliman foi aluno da escola de Fort Benning, a Escola das Américas, nos EUA em 2004, enviado pelo então presidente Carlos Mesa, atual derrotado por Evo nas eleições de outubro. Circulam informações de que Kaliman teria recebido um milhão de dólares por parte de Bruce Williamson, encarregado de negócios da embaixada dos EUA na Bolívia, enquanto outros generais teriam recebido valores semelhantes e vários chefes da polícia receberam 500 mil dólares.

Um dos pontos débeis para se compreender o golpe na Bolívia é a posição da COB – Central Obrera Boliviana – principal organização sindical do país. A entidade apoiou os governos Evo ao longo dos últimos anos, mas caiu na “trampa” de pedir a renúncia de Evo no dia 10/11 para “pacificar o país”. O líder da central, Juan Carlos Huarachi, acreditou na narrativa de que “o povo está pedindo novas eleições” e não tinha dimensão do golpe que estava se armando. Prova disso é que agora pedem revogação do decreto 4078, que anistia militares repressores, e a renúncia de Añez. Agora ameaçam com greve geral.

Luis Fernando Camacho é um nome importante para entender o golpe. Presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz, cidade mais populosa do país. Tem atuado nas costuras e articulações entre elementos golpistas, como diplomatas, militares, chefes da polícia e até mesmo setores sindicais e sociais anti-evo. Camacho foi um dos primeiros a entrar no palácio presidencial após a saída de Evo e com uma bíblia nas mãos disse: “a Bíblia voltará ao palácio do Governo”. Camacho tem 40 anos, veio das elites empresariais, com a família prejudicada pelas nacionalizações de Evo, inclusive. Diz não fazer política e sempre faz uma “oração ao todo-poderoso” nos eventos em que participa. Uma espécie de Bolsonaro boliviano. Só pra termos uma idéia o apelido que ele recebeu dos que o apoiam é “Macho Camacho”.

Na terça (19) a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) emitiu uma nota registrando que desde o da 20 de outubro um total de 23 pessoas morreram na Bolívia no contexto de “tensão social” (eles não falam de golpe), 715 ficaram feridas e 624 foram presas. Também mencionam os 9 mortos em Sacaba e 122 pessoas feridas. A nota diz também que causa “particular preocupação” o fato de que há operações combinadas entre a Polícia Nacional e as Forças Armadas para o “controle da ordem pública” sem que haja amparo legal para esse tipo de operações. A CIDH denuncia a restrição ao trabalho dos jornalistas e meios de comunicação. Também condena o decreto 4078 que exime militares de responsabilidades penais decorrentes da repressão. A CIDH registra que no dia 12 de novembro o bloco minoritário do senado votou sem quórum a assumção da interinidade de Añez na presidencia.

Na tarde desta quarta-feira (20) com uma manobra dos governos do Brasil e da Colômbia a OEA aprovou uma resolução sobre a situação da Bolívia que obteve 26 votos a favor, três contra (México, Nicarágua e San Vicente y las Granadinas), quatro abstenções e uma ausência. Um dos governos que se absteve na votação foi o do Uruguai e informou que a resolução “brasileira/colombiana” omite o fato de que na Bolívia se produziu uma ruptura da ordem institucional quando os procedimentos constitucionais não foram seguidos para aprovar a renúncia de Evo na Assembleia Legislativa, como determina o artigo 170 da constituição boliviana. A chancelaria uruguaia alerta ainda que a OEA não possui legitimidade para reconhecer governos de fato a partir de sua secretaria geral, como fez Almagro em relação à Añez. As negociações para a elaboração da resolução foram feitas às margens do Conselho Pemanente da OEA, também denunciou o Uruguai.

Seguindo uma matriz desestabilizadora “fake news + bots replicando a info” como a que elegeu Bolsonaro no Brasil, na tarde de hoje (20) os golpistas venezuelanos fizeram circular um áudio que contém uma conversa supostamente entre Evo e um líder sindical em que Evo orientaria para que os manifestantes bloqueassem a entrada de alimentos e bens de consumo em La Paz. Se o áudio é realmente de Evo, não é de se espantar que siga sendo o líder, agora da resistência ao golpe, se não é a voz de Evo, já sabemos bem como funcionam esses expedientes de manipulação das consciências.

Também em um movimento midiático, coordenado com a publicação da resolução da OEA, a presidente autoproclamada entregou em nome de “seu governo” um projeto à Assembleia Legislativa da Bolívia um projeto para que se inicie o “processo eleitoral 2020” no país. Ocorre que há uma quebra da institucionalidade e do próprio reconhecimento da vacância de poder uma vez que a própria Assembleia não aprovou a renúncia de Evo/Linera e muito menos teve quórum para a interinidade de Añez. A constituição prevê que um interino legítimo tem até três meses para chamar eleições e que o calendário é estabelecido pelo Tribunal Supremo Eleitoral que neste momento está sem titulares.

domingo, 1 de setembro de 2019

Rússia: uma diplomacia diferente


Segundo a tradição, a diplomacia russa não procura, ao contrário dos Estados Unidos, redesenhar fronteiras e alianças. Ela tenta esclarecer os conflitos entre parceiros. Foi assim que ajudou o antigo Império Otomano e o antigo Império Persa a afastarem-se de uma sua definição religiosa (a Irmandade Muçulmana pela primeira vez, o Xiismo pela segunda) e a assumir uma definição nacional pós-imperial. Essa evolução é extremamente visível na Turquia, mas supõe uma mudança de mentalidades no Irão.
Quando há cinco anos a Rússia passou a intervir sistematicamente para que no Médio Oriente fosse respeitado o direito internacional, tinha que ter em conta o papel da Turquia, do Irão e dos Emiratos Árabes Unidos com quem tinha diferentes pontos de vista. O estilo de intervenção da diplomacia russa teve o acolhimento dos seus parceiros com resultados positivos.



Lá onde o poder militar dos EUA e a “sua visão do mundo” falharam, tem até agora vencido a muito delicada diplomacia russa. Um novo equilíbrio existe no vale do Nilo, no Levante e na península arábica, mas sem evitar novos riscos no Golfo Pérsico.
O pretenso emirato da Al-Qaeda, na Síria, dividido por cantões e sem administração central, esteve apoiado em ONGs ligadas aos serviços secretos de várias potências ocidentais que forneciam o necessário mantimento a esses cantões. Erdogan sofreu uma forte derrota eleitoral por ter aberto conversações sobre curdos presos, nomeadamente o presidente do PKK, Abdullah Öcalan. Os curdos tiveram papel muito negativo nos combates que a Síria com apoio da aviação russa, travaram, na reconquista do território perdido pela Síria. Isto depois de Erdogan ter decidido este ano, em 6 e 3/8/ uma nova identidade turca, deixando de ser religiosa para passar a ser a de um estado nacional, revelando ir trabalhar para expulsar as tropas curdas da Síria. Os EUA deixaram de apoiar o Rojava, estado curdo pretensamente em solo sírio, constituído por turcos que limparam etnicamente a área.
Os governos ocidentais mais interventivos na cena internacional, como a França e a Alemanha desejam o estado curdo na Turquia, onde têm a legitimidade da Conferência de Sèvres em 1920, Irão, Iraque ou Síria. Mas curiosamente não o querem criar na Alemanha, onde são cerca de um milhão.

A situação do Iémen
Os EUA e a Arábia Saudita têm apoiado o presidente Hadi para explorar as reservas de petróleo da fronteira, mas a revolta dos xiitas Zaidites tem cada vez mais recursos e ganha terreno. No passado dia 1 de agosto os guardas costeiros dos emiratos assinaram um acordo de cooperação transfronteiriço com a polícia iraniana de fronteira. No próprio dia o dirigente da milícia iemenita, apoiada pelos emiratos foi assassinado por um grupo islâmico apoiado pela Arábia Saudita. Obviamente, a aliança entre dois príncipes da Arábia e Emirados, Mohammed ben Salmane ("MBS") e Mohammed ben Zayed Al Nahyane ("MBZ"), ficou maltratada.
Em 11 de agosto, a milícia apoiada pelos Emirados Árabes Unidos invadiu o palácio presidencial e vários ministérios em Aden, apesar do apoio saudita ao presidente Hadi, foi refugiado de longa data em Riad. No dia seguinte, "MBS" e "MBZ" encontraram-se em Meca na presença do rei Salman. Eles rejeitaram o golpe de estado e chamaram suas respetivas tropas para se acalmarem. Em 17 de agosto, os militares pró-Emirados evacuaram em boa ordem da sede do governo. Durante a semana em que os "separatistas" tomaram Áden, os Emirados Árabes Unidos controlaram de fato os dois lados do estreito estratégico Bab el Mandeb, ligando o Mar Vermelho ao Oceano Índico. Agora que Riyad preservou sua honra, terá que dar uma contrapartida a Abu Dhabi. Estes parecem ter concluído que a guerra é invencível e ensaiaram uma aproximação ao Irão.

Cadeiras musicais no Sudão
No Sudão, depois que o presidente Omar al-Bashir (irmão dissidente muçulmano) ter sido derrubado por manifestações da Aliança pela Liberdade e Mudança (ALC) e o aumento do preço do pão ter sido cancelado, um conselho militar de transição ocupou o poder. Na prática, essa revolta social e alguns milhares de milhões de petrodólares permitiram que os manifestantes transferissem o país da uma tutela para outra saudita.
Em 3 de junho, uma nova manifestação do LRA foi dispersa com um banho de sangue pelo Conselho Militar de Transição, provocando 127 mortos, o que provocou condenação internacional, tendo o Conselho Militar realizado negociações com organizações civis e assinado um acordo no dia 17. Por um período de 39 meses, o país será governado por um Conselho Supremo de 6 civis e 5 militares, não identificados, controlados por uma assembleia de 300 membros nomeados e não eleitos, compreendendo 67% dos representantes da ALC.
Solução tão pouco democrática não suscitou, porém, reservas de qualquer partido
O economista Abdallah Hamdok, ex-chefe da Comissão Económica das Nações Unidas para a África, será o novo primeiro-ministro, devendo obter o fim de sanções contra o Sudão e reintegrar o país na União Africana.  O ex-presidente Omar al-Bashir será julgado no país para garantir que ele não mais possa ser extraditado para Haia para o Tribunal Penal Internacional.
O poder real será mantido pelo "general" Mohammed Hamdan Daglo (conhecido como "Hemetti"), que não é um general ou mesmo um soldado, mas um líder da milícia empregada por "MBS" para subjugar a resistência iemenita. Durante esse jogo de cadeiras, a Turquia - que tem uma base militar na ilha sudanesa de Suakin para cercar a Arábia Saudita - não disse nada.
De fato, a Turquia concorda em perder em Idleb e no Sudão para ganhar contra os mercenários curdos pró-EUA. Só isso foi vital para ela. Foi precisa muita discussão para ela perceber que não podia vencer em todas os tabuleiros ao mesmo tempo e que devia hierarquizar as suas prioridades.

Os Estados Unidos contra o petróleo iraniano
Londres e Washington continuam sua competição, iniciada há setenta anos atrás, pelo controle do petróleo iraniano. Como nos dias de Mohammad Mossadegh, a coroa britânica pretende decidir sozinha o que pertence ao Irão. Embora Washington não queira que as suas guerras contra o Afeganistão e o Iraque beneficiem Teerão (consequência da doutrina Rumsfeld / Cebrowski) e pretenda fixar o preço mundial da energia (doutrina de Pompeo).
Essas duas estratégias foram combinadas durante a apreensão do navio-tanque iraniano Grace 1 nas águas da colónia britânica de Gibraltar. O Irão, por sua vez, apresou dois navios britânicos no Estreito de Ormuz, argumentando – supremo insulto! – que o principal carregava "óleo de contrabando", ou seja, o petróleo subsidiado pelo Irão comprado por Londres no mercado negro. Quando o novo primeiro ministro, Boris Johnson, percebeu que seu país tinha ido longe demais, ficou "surpreso" ao ver a justiça "independente" de sua colónia libertar o Grace 1 . Imediatamente Washington emitiu um mandado de apreensão novamente.
Desde o início deste caso, os europeus pagam o preço pela política norte-americana e protestam contra ela com poucas consequências. Somente os russos defendem não o seu aliado iraniano, mas o Direito Internacional, como fizeram sobre a Síria, o que lhes permite ter uma linha política consistente.



segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Bom fim de semana, por Jorge


"Homo sapiens non urinat in ventum"
"Gente sensata não mija contra o vento" (?)

inscrição no grande pórtico entre a 
Praça Leidse e a Praça Max Euwe em Amsterdão

Os interesses económicos por detrás da destruição da Amazónia




O Governo de Rondônia lançou a Operação Jequitibá de prevenção e combate aos focos de incêndios no Estado (Foto: Esio Mendes)


As queimadas que destroem a Amazónia e chamam atraem a atenção mundial são apenas a face mais visível da exploração da maior floresta tropical do mundo. Por trás do derrube da mata e do fogo, estão poderosos interesses económicos: a criação de gado, o comércio ilegal de madeira e a produção de soja.

O repórter Brasil e o The Guardian foram-lhes descobrir os contornos.

Parte desses produtos tem como destino final a Europa. O presidente da França, Emmanuel Macron, chamou as queimadas de “crise internacional”, declaração que foi interpretada como uma subida no tom das ameaças sobre a compra de produtos brasileiros — e que coloca em xeque o acordo entre Mercosul e União Europeia. A relação do mercado internacional com as queimadas não é simples, já que a Europa compra produtos que saem de áreas desmatadas ilegalmente há anos, conforme a Repórter Brasil denunciou em diversas reportagens.
O fogo é uma das etapas do processo de abertura de pastagens, que tem início no derrube da floresta com tratores e correntes, passa pela secagem e pelas chamas e termina no plantio de capim para alimentar os animais, de acordo com Erika Berenguer, pesquisadora sénior do Instituto de Mudanças Ambientais da Universidade de Oxford. Após a substituição das árvores pelo gado, o terreno pode vir a ser usado para o plantio agrícola, segundo esta pesquisadora, que já estuda queimadas na Amazónia há 10 anos.
Se na década de 1970 apenas 1% da Amazónia estava desmatada, hoje o índice chega a 20%, segundo relatório da Procuradoria do Meio Ambiente do Ministério Público Federal. A destruição da floresta acompanhou a evolução do rebanho bovino na Amazônia, que passou de 47 milhões de animais em 2000 para cerca de 85 milhões atualmente. Quase 40% das 215 milhões de cabeça de gado do país pastam em áreas amazónicas. A pecuária ocupa 80% da área desmatada da região, segundo o relatório.
A exploração económica da Amazónia está por trás dos 40 mil focos de incêndio que atingiram a floresta de 1 de janeiro a 23 de agosto, detetados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). É o maior índice de queimadas desde 2010.




O aumento dos focos de incêndio acontece ao mesmo tempo que o governo do presidente Jair Bolsonaro toma medidas controversas como, como a redução das fiscalizações ambientais, os cortes orçamentais para o ministério do Meio Ambiente, o questionamento dos dados oficiais sobre desmatamento e a extinção do Fundo Amazónia.
Ao contrário do que declarou o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, de que as queimadas se devem ao “tempo seco, vento e calor”, os dados do INPE indicam que o fogo vem sendo causado pelo derrube da floresta, segundo pesquisadores do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM).

Fronteiras agrícolas
Não por acaso, as atuais queimadas da Amazónia acontecem em áreas tradicionalmente dedicadas a pastagens ou a plantações de soja. Um cientista da agência espacial NASA apontou com precisão a localização dos focos de calor detetados em agosto. “[Os satélites mostram] colunas de fumaça enormes saindo daquelas áreas da fronteira agrícola, como Novo Progresso, a região da Terra do Meio, no Pará, e o sudeste do estado do Amazonas”, disse Douglas Morton ao jornal Folha de S. Paulo, acrescentando que a última vez que os satélites detetaram uma destruição semelhante foi em 2004.
Localizada na bacia do rio Xingu, a Terra do Meio é ameaçada pelo avanço do desmatamento na cidade paraense de São Félix do Xingu, que possui o maior rebanho bovino do país, com 2,2 milhões de cabeças. Ali, a gigante mundial da produção de carne, JBS, foi apanhada em flagrante a comprar gado de um grupo económico multado pelo Ibama (1) por desmatar a Amazónia.
Trata-se da AgroSB, uma das maiores produtoras de gado do país, que foi multada por desmatamento ilegal em 69,5 milhões de reais entre 2010 e 2019, nas suas fazendas em São Félix do Xingu, conforme mostrou, em julho, investigação da Repórter Brasil em parceria com o jornal britânico The Guardian. A companhia, que faz parte do grupo Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas, é uma das fornecedoras de gado da JBS.
Não foi a primeira vez que a JBS comprou gado de grupos desmatadores. Em 2017, a produtora de proteína animal comprou gado de Jotinha, apelido de Antônio Junqueira, que realizava na região o maior esquema de desmatamento ilegal associado a grilagem (2) de terras da história da Amazónia, segundo operação realizada pelo MPF (3). A denúncia sobre exportação de carne ligada ao desmatamento, feita pela Repórter Brasil em parceria com o The Guardian, levou o mercado inglês Waitrose, sétimo maior da Inglaterra, a retirar a carne da empresa brasileira das suas prateleiras.
Procurada, a JBS informou que mantém o posicionamento que deu à época da publicação das reportagens, quando afirmou que, “assim que recebeu as informações sobre as irregularidades, todas as compras de gado da família Junqueira foram imediatamente interrompidas”.
Sobre a compra de gado da AgroSB, a JBS informou que “os fatos apontados não correspondem aos padrões” adotados pela companhia. A empresa informou que não adquire animais de fazendas envolvidas com desmatamento ou que estejam embargadas pelo Ibama. A empresa reforça que possui um sistema robusto de monitorização dos seus fornecedores de gado.

Já a AgroSB, também em nota divulgada na época da publicação da reportagem, afirmou que comprou a fazenda Lagoa do Triunfo em fevereiro de 2008 e que “nunca realizou qualquer supressão de vegetação no imóvel”. “O modelo de negócio da AgroSB é o da aquisição de áreas abertas e com pastagem degradadas, as quais são adubadas, recuperadas e transformadas em pastos de alta intensidade ou plantações de grãos”, completa a nota.

Plantações de soja
Enquanto a pecuária desmatadora se concentra nos estados da Amazónia Legal (4), a maioria das plantações de soja ocupam áreas do cerrado (5). Porém, parte das plantações do grão está no norte do Mato Grosso – cujo bioma é amazónico. Na cidade de São José do Rio Claro, no Mato Grosso, por exemplo, a Repórter Brasil apanhou em flagrante um fazendeiro denunciado e multado por trabalho escravo e desmatamento ilegal que exportava proteína de soja para a Noruega. No país nórdico, a soja era usada como ração na criação de salmão.
Ainda que em menor proporção, as plantações de soja também contribuem para a destruição da floresta. Em 2018, o então ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, divulgou estudo revelando que o grão ocupa ilegalmente 47,3 mil hectares de floresta desmatada da Amazónia – aumento de 27,5% na comparação com o registrado na safra anterior (37,2 mil hectares).
Empresas dinamarquesas compraram, em 2018, madeira irregular de exportadores brasileiros multados diversas vezes pelo Ibama

Empresas dinamarquesas compraram, em 2018, madeira irregular de exportadores brasileiros multados diversas vezes pelo Ibama (Foto: Ibama)



 A Operação Shoyo, realizada em outubro de 2016 pelo Ibama, investigou no Mato Grosso os compradores de “soja pirata” – grão produzido em áreas desmatadas e embargadas. A operação resultou em multas de 170 milhões de reais relacionadas com a plantação em áreas proibidas, de acordo com informações do relatório “Salmon on soy beans – Deforestation and land conflict in Brazil” (6).
A Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja Brasil) divulgou uma nota no passado dia 23 em que condena a ocorrência de queimadas na Amazónia em áreas de vegetação e de produção agrícola no norte do Brasil.
Sobre a extração ilegal de madeira na Amazónia, a investigação conjunta da Repórter Brasil e da organização jornalística dinamarquesa Danwatch revelou, no ano passado, que empresas daquele país compraram produtos de exportadores brasileiros multados diversas vezes pelo Ibama. Oque constitui uma prova de que esses crimes não estão sendo bem controlados pelas redes de fornecedores internacionais.

Desmatadores financiam campanha
O agronegócio brasileiro tem relações estreitas com a classe política. A JBS foi uma das maiores financiadoras de campanhas políticas em 2014. Executivos da empresa assumiram em delações que destinaram mais de 500 milhões de reais para ajudar a eleger governadores, deputados estaduais, federais e senadores de todo o país. Ainda que a empresa dona das marcas Friboi e Swift não tenha sido diretamente multada por desmatamento, ela mantém na sua rede de fornecedores diretos e indiretos grupos autuados pelo crime.
Servidores do Instituto Chico Mendes (ICMBio) posaram para uma foto com a frase “Amazónia, estamos aqui”, um recado para governo dizendo que eles estão dispostos a irem fiscalizar e punir os desmatadores e os responsáveis pelas queimadas.
Após a prisão dos donos da JBS, Joesley e Wesley Batista, em 2017, a empresa parou de financiar campanhas, mas executivos ligados a companhias que foram autuadas pelo Ibama por crimes ambientais – o que inclui desmatamento ilegal – fizeram doações para campanhas de pelo menos 117 deputados e senadores eleitos, que somam 4,2 milhões de reais. Entre os financiados por desmatadores, há nomes proeminentes, como o do atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o ex-presidente do Senado, Renan Calheiros.
O levantamento exclusivo feito pela Repórter Brasil cruzou dados do Ibama e da Receita Federal e foi publicado em 5 de fevereiro deste ano. O levantamento considera crimes ambientais em todas as regiões do país e não apenas na Amazónia.

Reação
A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, disse na sexta-feira, dia 23, que as queimadas acontecem durante todo o ano no Brasil. Ela destacou que não se pode dizer que o agronegócio brasileiro é o “grande destruidor” da Amazónia por causa dos incêndios que ocorrem neste momento na região. “Existe hoje uma preocupação do mundo com o meio ambiente. O Brasil não está fora dessa preocupação. E os produtores rurais também têm essa preocupação porque eles são os maiores prejudicados, principalmente aqueles que usam tecnologia”, disse a ministra.



Também nessa sexta-feira, um grupo de técnicos do Instituto Chico Mendes (ICMBio) posou para uma foto com a frase “Amazónia, estamos aqui”. Segundo um dos técnicos, a foto é um recado para o governo federal a dizer que eles estão dispostos a irem fiscalizar e punir os desmatadores e os responsáveis pelas queimadas. “Mas o governo precisa disponibilizar a verba e autorizar as operações”, disse um dos fiscais durante o treino realizado na Academia Nacional da Biodiversidade, em Iperó (SP).

(1)    Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
( (2)  A grilagem de terras é a falsificação de documentos para, ilegalmente, tomar posse de terras devolutas ou de terceiros, bem como de prédios ou prédios indivisos. O termo também designa a venda de terras pertencentes ao poder público ou de propriedade particular mediante falsificação de documentos de propriedade da área. O agente de tal atividade é chamado grileiro.
  (3) Ministério Público Federal que permite um acesso rápido e integrado nos termos que o utiliza entenda sobre compras, contratos, licitações, despesas com pessoal, gastos com diárias e passagens, etc.
( (4)  O conceito de Amazónia Legal foi instituído pelo governo brasileiro como forma de planear e promover o desenvolvimento social e económico dos estados da região amazónica, que historicamente compartilham os mesmos desafios económicos, políticos e sociais. Incorpora também parte de Cerrado e do Pantanal.
( (5)    O Cerrado é uma vasta zona tropical de savana e ecorregião brasileira, particularmente nos estados de Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Tocantins e Minas Gerais. As áreas “core” do bioma do Cerrado são os planaltos centrais do país.
( (6)  Os dados fazem parte do relatório "Rainforest Foundation Norway - 2018 Salmão em soja - Desflorestamento e conflito de terras nos Brazil" (2018).

sábado, 24 de agosto de 2019

Bom fim de semana, por Jorge


"Le savant n’est pas l’homme qui 
fournit les vraies réponses ;


 c’est celui qui 
pose les vraies questions". 

"Sábio não é o que dá 
as respostas verdadeiras,

 é o que coloca 
as verdadeiras questões."

Claude Lévi-Strauss 
antropólogo e etnólogo 
1908-2009) 
em Le cru et le cuit (1969)

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Aldo Rebelo: A tragédia argentina e a ortodoxia económica



“Você sai da Argentina e volta 20 dias depois, e está tudo mudado. Você sai da Argentina e volta 20 anos depois, e nada mudou.” (ouvido de um argentino)
O presidente Maurício Macri enfrenta, na véspera das eleições de outubro, o momento mais difícil de sua trágica gestão, agravado pela retumbante e aparentemente imprevista derrota nas eleições prévias eleitorais, quando ficou 15 pontos atrás de seu adversário peronista Alberto Fernandez e da sua vice Cristina Kirchner.

Por Aldo Rebelo (1)
A tragédia argentina e a ortodoxia económica



 A presidência de Macri consolidou-se como um grande fracasso, com três anos de crescimento negativo, acordos desastrados com o FMI e uma desorientação completa ao final do governo 
Os números são implacáveis contra Macri: o aumento da pobreza e do desemprego, o disparar da inflação e dos juros e o peso argentino que se derreteu frente ao dólar. Exatamente o contrário de tudo o que prometera Macri na sua tomada de posse.

A vitória de Macri foi recebida nos meios económicos e políticos conservadores e partidários do liberalismo económico ortodoxo como uma promessa. Os descendentes pouco habilitados da economia liberal encheram a comunicação social do fenómeno Macri como a boa nova que salvaria a Argentina e, conseguindo-o, salvaria também o Brasil.

O atual presidente da República, então deputado federal, Jair Bolsonaro, ao comentar minha nomeação para o Ministério da Defesa em 2015, deu a eleição de Macri como exemplo de mudança na Argentina e esperança para o Brasil.

A verdade é que a presidência de Macri consolidou-se como um grande fracasso. Três anos de crescimento negativo, uma negociação desastrada com o FMI, e uma desorientação completa no final do governo, deixou a sua candidatura à reeleição ameaçada de substituição pela governadora de Buenos Aires, Maria Eugenia Vidal.

Nas vésperas das eleições prévias e da humilhante derrota, Macri já não fazia a defesa de seu legado ou do seu futuro governo. Desalentado, apenas agitava o espantalho do regresso de Cristina Kirchner ao poder.

O fantasma que ronda a ortodoxia liberal argentina não se apela do nome de Kirchnerismo. É o velho peronismo que, entre êxitos e fracassos, permanece na memória do povo argentino nos seus dias promissores de crescimento e bem-estar.

O primeiro governo de Perón (1946-1952) deu aos argentinos rápido crescimento da economia, elevação do padrão de vida material e espiritual dos trabalhadores, liquidou a dívida externa de 12,5 mil milhões e tornou a Argentina credora de 5 mil milhões de dólares perante o mundo. A França tomava dinheiro emprestado da Argentina e a Espanha escapava da fome pela generosidade do general Perón e de sua esposa Evita.


Os casais Perón e Kirchner: a memória de seus governos dá a tónica da eleição argentina



No governo Nestor Kirchner, a Argentina cresceu a taxas superiores a 8% e os trabalhadores receberam de volta uma parte do que tinham perdido nos períodos da ortodoxia liberal. É verdade que, na fase final de Cristina Kirchner no poder, a economia argentina desabou, mas nada que se compare aos maus momentos dos governos militares com Martinez de Hoz, ou à fase de Domingo Cavallo e seu corralito, espécie de confisco que limitava o saque em conta por parte da população.

O governo militar acumulou a humilhação nas Malvinas, o sequestro, tortura e morte de opositores e a liquidação de 400 mil empresas argentinas, tragédia que isolou e transformou em párias as forças armadas do país.

É esse o confronto de fundo que fragiliza as pretensões de Macri para um novo governo. Em eleição tudo, ou quase tudo, pode acontecer, mas é provável que a memória antiga do peronismo dê a Alberto Fernandez o trunfo definitivo contra o seu adversário.

Quando não resta nada, resta a esperança, e parece que Macri deixou de ser a esperança para os argentinos. Restaram, então, a memória, e cavalgando a memória, Alberto Fernandez, Cristina Kirchner e o peronismo.

(1)    Aldo Rebelo, jornalista, foi ministro da Coordenação Política e Relações Institucionais; do Desporto; da Ciência, Tecnologia e Inovação; e da Defesa (governos Lula e Dilma) e publicou ontem no Vermelho do PC do B este artigo que reproduzimos.

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Bom fim de semana, por Jorge


"The consequence of being 

in a single-currency union 

is that it effectively loses 

one tool against recession.

"A consequência de estar 

numa união de moeda única 

é na verdade perder 

um instrumento contra a recessão."

Christine Lagarde

ex-diretora geral do FMI e nova presidente do BCE
n.1956