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segunda-feira, 13 de novembro de 2017

O golpe palaciano na Arábia Saudita: e depois de assentar a poeira?

Parece difícil acreditar que, depois dos Guardas da Revolução do Irão terem vindo em apoio dos houthis, a Arábia Saudita estar a não ter sucesso militar contra o Iémen e o apoio popular do novo rei estar reduzido, MBS pudesse investir numa guerra contra o Hezbollah e o Irão, para a qual o empurra Israel.

Não há informações sobre os reais motivos do golpe. Tudo indica que as reformas de Moahmmed bin Salman (MBS) e o seu poder pessoal estavam ameaçados. O actual governante anunciou uma série de reformas políticas e económicas no país. Enquanto reforça o seu poder político pessoal, adopta uma atitude mais agressiva na repressão política interna e na política externae na política externa.

 
Mais de mil personalidades sauditas foram presas no decurso do golpe palaciano do passado dia 4. Os detidos pertencem principalmente ao clã Abdullah, mas também a outros clãs que estariam a disputar a sucessão do trono.
Enquanto alguns dos «suspeitos» foram presos, outros estão sob prisão domiciliária no Hotel Ritz-Carlton. Dormem em colchões, guardados pelas forças de segurança.
De acordo com o Wall Street Journal, o total de bens confiscados a adversários e rivais políticos do príncipe herdeiro Mohammed Ben Salman é de 800 mil milhões de dólares. No entanto, uma grande parte desses activos está estacionada no exterior, o que forçará a Arábia Saudita a afirmar os seus direitos sobre eles.
No mesmo hotel encontrava-se – e lá continua – o primeiro-ministro do Líbano, Saad Hariri, que aí tinha anunciado a sua demissão, tendo-a comunicado por telefone ao presidente libanês Michel Aoun que afirmou que só a aceitará presencialmente.
Na sua alocução de demissão, às 11h (locais) de dia 4, o primeiro-ministro libanês justificou a sua decisão, de forma muito pouco convincente, por recear pela sua vida, aludindo ao assassinato do anterior primeiro-ministro, seu pai, Rafiq al-Hariri, e à interferência que o Irão e o Hezbollah estariam a ter contra a estabilidade política do conjunto dos países árabes.
As autoridades libanesas negaram a existência de qualquer tentativa de assassinato contra ele que a estação Al-Arabyia, logo a seguir à alocução de demissão, tinha garantido ter existido anteriormente. Será mais plausível admitir que Hariri fez o jeito ao seu credor, a Arábia Saudita, a quem deve 4 mil milhões de dólares, a título pessoal. Hariri é também, atendendo à sua dupla nacionalidade, um bastardo do clã Abdallah.
Depois da alocução, no fim do dia dá-se o ataque atribuído aos Houthis ao aeroporto de Riade com mísseis Patriot. Minutos depois, Mohammed bin Salman deu o golpe, demitindo figuras associadas a outros concorrentes ao trono, aprovou nova lei antiterrorista e pôs em acção uma Comissão de Luta Contra a Corrupção que procedeu à prisão e centenas de personalidades, incluindo príncipes. Mas anunciou também uma série de medidas que lhe garantissem o apoio popular.
Entre os detidos no hotel estão responsáveis e grandes empresas, o que dificultará certamente a atracção do investimento estrangeiro.

Estas são as notícias que nos chegam. Mas para o entendimento do que pressiona os acontecimentos na Arábia Saudita, há que atender às seguintes questões.

Por um lado, a abertura do capital da Aramco a 5% provavelmente feito na bolsa de Nova Iorque, apesar de também ter sido considerada ser feita nas bolsas de Londres e Hong-Kong.
A Aramco saudita é a maior empresa de energia do mundo. Essa abertura do capital social da companhia em bolsa de valores com a oferta pública inicial de acções (IPO, na sigla em inglês) criaria uma das mais valiosas empresas de energia do mundo.
A companhia produz mais de 10% da oferta mundial de petróleo todos os dias e controla uma grande cadeia de refinarias e instalações petroquímicas para complementar as suas operações de exploração e produção.
As estimativas quanto ao valor da Aramo variam, mas com base num número conservador de cerca de 2,5 biliões (milhões de milhões, doze zeros à direita dos 2,5), a possível abertura de 5% do capital em acções resultaria num valor potencial de 125 mil milhões de dólares – maior que o da British Petroleum (BP) e da francesa Total.
Os sauditas começaram a considerar abrir o capital da companhia num momento em que o país procura gerar receitas atendendo à queda acentuada do preço do petróleo e a uma nova fase da aproximação de uma menor dependência das economias de todo o mundo do petróleo e derivados.
A economia está em recessão e as reservas externas estão a esgotar-se.
O homem forte que sobressai do golpe palaciano em curso, o vice príncipe Mohammed bin Salman, tem dirigido o «Plano de Transformação Nacional», destinado a promover o crescimento do sector privado e a reduzir a dependência do governo da receita obtida com as exportações de petróleo.
No dia 5, Trump tweetou que «apreciaria muito que a Arábia Saudita fizesse a oferta pública da venda das acções da Aramco junto do New York Stock Exchange, coisa que considerava importante para os Estados Unidos!». Trump também deu os parabéns a Salman por tudo o que fez desde que chegou ao poder.
O Reino Unido não se fez esperar e declarou-se pronto a assinar uma garantia de empréstimo de 2 mil milhões de dólares para a Aramco, e prepara-se para hospedar a flutuação do mercado de acções do gigante da energia da Arábia Saudita.
Mas a visita do rei, há poucas semanas, feita à Rússia e a visita de responsáveis russos a MBS para falarem, em termos promissores sobre a energia e o investimento, revelam que ambos não quererão por os ovos todos no mesmo cesto
Esta precipitação da abertura do capital social poderá ter enfrentado oposições quanto à formação mais ou menos rápida do preço das acções e à consideração ou não no pacote a negociar das próprias reservas do petróleo do país.

Uma outra questão ainda é do campo económico, Mohammed bin Salman ter um programa de diversificação da economia saudita, historicamente dependente apenas do petróleo. O seu plano visa industrializar o país, criar um polo de desenvolvimento no campo da informática, aumentar o rendimento vindo de sectores não petrolíferos para um milhão de milhões de dólares por ano, criar uma política de 75% de conteúdo nacional para a exploração do petróleo, além de medidas para ampliar o turismo. Reformas estas que visam modernizar o país que sempre foi um pilar da dominação imperialista no Oriente Médio.

Outra questão prende-se com o sempre presente conflito entre a Arábia Saudita e o Irão por maior protagonismo no mundo árabe.

Uma outra questão tem a ver com o papel de Israel. De acordo com o canal de televisão israelita 10, o governo de Netanyahu enviou uma mensagem para todas as suas embaixadas à tarde para lhes pedir que:
- fizessem lobbying com o governo do país onde estão para lhes explicar o ponto de vista israelita sobre a renúncia do primeiro-ministro libanês, Saad Hariri. Este tipo de démarche é muito raro.
- convencer cada governo de que esta demissão provaria até que ponto o Irão e o Hezbollah poriam em causa a segurança do Líbano.
- afirmar que esta renúncia contradiz o argumento de que a participação do Hezbollah no governo libanês estabiliza o país.
- apoiar a Arábia Saudita na sua guerra contra os rebeldes Houthis do Iémen e dizer que o ataque de mísseis contra o aeroporto de Riade exige uma maior pressão sobre o Irão e o Hezbollah.

É evidente a crescente agressividade saudita contra o Líbano

No dia seguinte à alocução da demissão de Hariri, à queda de um míssil Patriot, e disso ter sido atribuído aos Houthis do Iémen, Sayyed Hassan Nasrallah, secretário-geral do Hezbollah, assinalou a incongruência da demissão do primeiro-ministro libanês, Saad Hariri, dizendo que a alocução lhe tinha sido imposta e reclamando o seu regresso ao Líbano.
A incongruência poderia resultar de Hariri, como outros responsáveis libaneses, ter recebido um enviado do Guia Ali Khamenei e trocado declarações amistosas nas vésperas. Hariri, poucas horas depois, foi chamado a Riade.
Na manhã de dia 6, o ministro saudita das Relações Exteriores Adel Jubair disse à CNN que os rebeldes Houthi tinham disparado um míssil no aeroporto de Riade e que isso era um acto de guerra. E o Ministro dos Assuntos do Golfo, Thamer al-Sabhan, no Al-Arabiya, descreveu o discurso de Hassan Nasrallah como uma «declaração de guerra contra a Arábia Saudita».
Curiosamente, a imprensa internacional começou por tratar da demissão de Saad Hariri, como facto independente do golpe palaciano que se deu, evidentemente com atempada preparação por Riade. Desde então, a revelação de outros factos deu crédito a que essa renúncia era apenas uma parte do golpe de Estado, dando razão a Hassan Nasrallah.
Israel não planeia atacar o Hezbollah novamente, dados os riscos militares e diplomáticos de tal operação. Mas o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu está a empurrar a Arábia Saudita para atacar a resistência libanesa e a preparar a opinião pública internacional para esse fim.
Isto acontece na altura em que se entrou num novo período no Médio Oriente, marcado pela derrota do Estado Islâmico no Iraque e na Síria e pelo falhanço de Massoud Barzani em constituir um Curdistão que fosse a plataforma para Israel atacar o Irão.
Depois da devastação pelas guerras dos outros estados da região, só saíram ilesos Israel, a Turquia, o Irão e a Arábia Saudita.
Antes do golpe de Riade, Israel tentou, sem êxito, criar um movimento separatista druzo à semelhança do que conseguira fazer no norte do país e no Iraque com os curdos.
Parece difícil acreditar que, apesar disso, e depois dos Guardas da Revolução do Irão terem vindo em apoio dos houthis, a Arábia Saudita estar a não ter sucesso militar contra o Iémen e o apoio popular do novo rei estar reduzido, MBS pudesse investir numa guerra contra o Hezbollah e o Irão, para a qual o empurram quer Israel quer os EUA.
Pouco tempo antes do presente golpe, o príncipe declarara querer modernizar o wahhabismo, corrente árabe saudita, e fazê-la evoluir para uma versão laica, chegando mesmo a prender mais de um milhar de imãs e teólogos ou a conceder às mulheres a condução automóvel ou a assistência a jogos em estádios.

Centralização do poder em MBS

Todas as decisões de prisão das personalidades referidas foram realizadas pela Comissão Anti-Corrupção criada pelo príncipe, que passou a dispor de todos os seus bens, pessoais e das empresas que dirigiam.
O príncipe MBS dirige, neste momento, os três exércitos da Arábia Saudita, a Aramco, o comité encarregado de todos os assuntos económicos que está prestes a lançar a maior privatização que o reino viu, e controla todas as cadeias de comunicação social sauditas, excepto a Al-Jazeera situada no Qatar com quem os sauditas abriram um conflito que perdura.
O rei Abdullah, que reinou entre 2005 a 2015, transformou o sunismo em religião do estado e praticou uma ditadura sangrenta e sem piedade. Depois da morte do rei Abdullah, perfilaram-se três herdeiros futuros, entre os quais MBS, que tratou agora de afastar os outros dois.
O próprio Hariri só não foi preso com as restantes personalidades do clã Abdullah por, apesar de ter anunciado a sua demissão como Primeiro-Ministro do Líbano, tinha que dar andamento à gestão corrente no Líbano até à nomeação de quem o substituísse nessas funções.
Pouco tempo antes do presente golpe, o príncipe MBS declarara querer modernizar o wahhabismo, corrente árabe saudita do sunismo, e fazê-la evoluir para uma versão laica, chegando mesmo a prender mais de um milhar de imãs e teólogos ou a conceder a condução automóvel às mulheres.
O rei que lhe sucedeu até ao presente foi Salman bin Abdulaziz al-Saud, que é um dos sete filhos do rei Abdul Aziz Al-Saud, que criou o Estado saudita moderno.
Em 2012, com a morte do príncipe-herdeiro Nayef, foi eleito príncipe herdeiro pelo rei Abdullah (seu meio-irmão) e pelo Conselho da Aliança (que reúne os principais Príncipes da Casa de Saud) e assumiu o trono saudita em 2015, estando hoje com 82 anos, e já de saúde debilitada. Com o seu golpe, MBS pode ter pretendido conjurar quaisquer movimentos que lhe retirassem a sucessão a seu pai e actual rei.
Como se percebe, esta é uma situação muito complexa mas, globalmente, a passagem da ditadura obscurantista para um «despotismo esclarecido» vai abrir novas oportunidades de resolver velhos problemas, o que não será contraditório com que, neste novo puzzle em reconstrução, os vários interesses em presença se movimentem, eventualmente em termos diferentes dos do passado recente.

Originalmente publicado em www.abrilabril.pt nesta mesma data.

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