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sábado, 25 de novembro de 2017

Marcelo, quo vadis?


1.    Sou um dos muitos portugueses que saudaram em Marcelo Rebelo de Sousa o estilo dialogante, de procura de consensos, de proximidade com as populações e de cooperação institucional. Este estilo, com um novo governo e com a lenta recuperação de direitos e rendimentos dos portugueses, ajudaram a criar um ambiente mais
aliviado e menos depressivo no país, fazendo toda a diferença com o governo de Passos Coelho e um final de mandato rancoroso de Cavaco Silva, decididamente afastado do percurso do nosso povo e da nossa história recente.
 

2.    O desempenho da Presidência da República variou depois do 25 de Abril de acordo com o seu titular. Mas, sempre, seja ele quem for, lhe é cometido que actue de acordo com o regime democrático português consagrado na Constituição da República e que implica a interdependência e controlos recíprocos dos diversos órgãos de soberania.

  
O Presidente da República representa a República Portuguesa, garante a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas e é, por inerência, Comandante Supremo das Forças Armadas.

 O Presidente dispõe da possibilidade de se dirigir a todos os Portugueses para expressar as suas opiniões, com cobertura por parte dos grandes canais de rádio e televisão.

 
O Presidente da República desempenha ainda importantes competências em relação a outros órgãos de soberania e tem-se relacionado com o Governo normalmente e de forma reservada, não devendo ser considerado normal entregar-se a despiques de popularidade com ele, manifestando discordâncias ou julgamento de comportamentos em público em relação a ele.

 
 
A Assembleia da República é a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses, cabendo-lhe legislar, particularmente aprovar o Orçamento do Estado, sob proposta do Governo, e desempenhar uma série de competências em relação ao Governo, e é composta por representantes das candidaturas apuradas de maneira garantir a proporcionalidade e o método de Hondt na transformação de votos em deputados.
       
           Ao Governo cabe a condução da política geral do país e é o órgão superior da
           administração pública. O actual tem tido uma relação normal com o Presidente         
           da República, sem ingerência conhecida em competências deste nem manifestação em
           público de estados de alma que o belisquem.



Aos Tribunais compete administrar a justiça em nome do povo, com independência incluindo a relativa a outros órgãos de soberania.

 

3.    O estilo do actual Presidente da República foi preparado ao longo de anos de comentários televisivos a questões pré-definidas, e a sabedoria assim expressa disseminou a simpatia do grande professor que foi e do grande comunicador que é, que gerou uma natural popularidade antes, durante e depois da campanha presidencial. E que o Presidente da República seguramente vai gerindo para sua intervenção política no futuro.

 
A sua intervenção passou do comentário semanal ao comentário diário sobre as mais variadas questões.

 
E com sucessivas aparições em diferentes cenários. Um dos que mais me desgostou foi o abraço no palco da Web Summit ao patrão da iniciativa, Paddy Cosgrave, depois de este ter tido o desarrincanço “Quase todas as semanas sou contactado por investidores a perguntar o que se está a passar em Portugal e em Lisboa” e cujo desgosto se tem acentuado em mim com o silêncio sobre o que é que a referida feira trouxe de financiamentos para as nossas startups.

 
Na passada 3ª feira, Marcelo é orador, com o CEO do Grupo “José de Mello Saúde”, Salvador de Mello, numa sessão onde se discute a necessidade do SNS andar mais de mão dada com a iniciativa privada. No mesmo dia Salvador de Mello, entrevistado num canal de TV, acentua essa tónica da “cooperação”. Mas então não existe já essa “cooperação”? Os médicos, enfermeiros e técnicos de saúde, formados com o dinheiro de todos nós não são atraídos para o sector privado? Os seus doentes internados não são enviados para intervenções cirúrgicas nos hospitais do SNS? Vários hospitais privados não têm já contratos com o Estado para “competirem” com o SNS? As clínicas privadas não vivem das requisições de exames feitas pelo SNS? O mesmo não acontece com a ADSE que é financiada pelo Estado e se comporta como uma seguradora de saúde?

Peço ao Professor Cavaco Silva e ao CEO Salvador de Mello que me digam coisas que eu não saiba…E o Presidente alinha nisto? É este um dos “grandes” problemas estruturais para o qual quer criar um consenso entre PSD, CDS e PS?

 

Depois dos fogos de Pedrógão Grande, de Junho e depois dos novos fogos de 15 Outubro, Marcelo Rebelo de Sousa continuou a capitalizar simpatias, agindo como provedor e fiscal da acção governativa, nalguns casos quase ao nível do fiscal de obras.

E foi mais longe – ou então foi a leitura mediática, do que não disse, que terá ido – ao pressionar a demissão de uma ministra, quando já estava informado que esta tinha pedido a demissão e que ela fora aceite.

A referência a um “novo ciclo” corresponderá a uma agenda nova, a que os media dominantes deram relevância, virados que estão para suscitar supostos ou reais confrontos entre o Presidente da República e o Governo?

 

Não me cabe defender o Governo – este não é o governo que desejaria – mas, como a maioria das pessoas faço dele uma apreciação positiva no que respeita à reposição de rendimentos e direitos que irá prosseguir a contragosto dos partidos da direita.

 

4.    Por outro lado, relativamente ao Presidente, já vinha de trás uma desconsideração relativa das questões do trabalho, condições da sua realização e rendimentos e dos direitos adquiridos pelos trabalhadores, que tanto lutaram ao longo de décadas por eles. O Presidente pareceu revelar algum desconforto com os resultados das negociações com o governo da administração pública e dos professores.

Era natural que fizesse uma reflexão sobre o trabalho numa das suas comunicações ao país. Não fez.

Houve espaço para se associar a actos de solidariedade social e caridade para os que foram empurrados para algumas margens da sociedade mas não para os trabalhadores em luta e em risco de perderem emprego, de verem a fome invadir os seus lares, de verem perder-se a coesão dos seus agregados familiares.

 

5.    Marcelo Rebelo de Sousa, como qualquer outro cidadão, tem parâmetros ideológicos de referência e uma visão do seu país e do mundo que lhe são próprios e que estas minhas considerações, que são feitas a título pessoal, não querem beliscar. Mas, sendo o Presidente de todos os portugueses, isso não pode ser confundido com a negação do exercício do direito da crítica, tanto mais que vivemos num país onde as liberdades de informar e ser informado deixam muito a desejar. Matéria que, aliás, daria um bom tema para mais uma reflexão presidencial.
"If you are neutral in situations of injustice,   
you have chosen the side of the oppressor."

“Quem é neutro em situações de injustiça
escolheu o lado do opressor”.
Desmond Tutu
bispo anglicano sul-africano
militante anti-apartheid
e prémio nobel da Paz 1984
n.1931

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Os acontecimentos no Zimbabwe

Tanto quanto é possível perceber com os dados disponíveis, o movimento militar, que levou à
demissão de Robert Mugabe, tem na origem a demissão do anterior vice-presidente,

Emmerson Mnangagwa, de 75 anos, e durante muito tempo o braço-direito de Mugabe,

depois de um despique travado nos corredores e no seio do partido no poder, a ZANU-PF,

entre ele e a mulher do presidente, Graça Mugabe, de 52anos, também vice-presidente, e na

ordem por esta dada de serem demitidas chefias militares e policiais que simpatizassem com

 Mnangagwa.
 
 
Mas é evidente que tem por detrás outros factores, alguns dos quais só serão

perceptíveis dentro de algum tempo.

 

Por exemplo, a China apoiou a ZANU na sua luta pela independência e passou a ser sua

importante parceira comercial. A pressão ocidental sobre Mugabe, dos últimos anos,

aproveitou a degenerescência do regime e o afastamento das preocupações com a população,

para confrontar as relações económicas com a República Popular da China e a disputa entre

os Estados Unidos e a China quanto à exploração dos recursos minerais do subsolo do país.

 

Dias antes do movimento militar, o chefe militar que liderou a revolta visitou a China. Depois a China comentou esta visita a Pequim, afirmando que se tinha dado no quadro de um intercâmbio militar normal, mutuamente acordado entre a China o Zimbabwe, que, como país amigo, estava a prestar muita atenção aos desenvolvimentos da situação no país.

 

A China tem um forte interesse no Zimbabwe, um país rico em recursos minerais, mas que sofre há décadas de um desenvolvimento económico lento, que para muitos observadores seriam da responsabilidade das políticas de Robert Mugabe. Ao longo dos últimos dois anos, a China trouxe cerca de 30 milhões de dólares por mês ao Zimbabwe, de acordo com Xing Shanshan, vice-secretário-geral da Federação Chinesa do Zimbabwe.

 

A China é a maior fonte de investimento directo estrangeiro no empobrecido país africano. O dinheiro foi aplicado no crescimento da produção de tabaco, na construção de painéis solares e noutros projetos. A China também é o maior parceiro comercial do Zimbabwe. A China perdoou ao Zimbabwe uma dívida no valor de 40 milhões de dólares no quadro de um maior estímulo à economia africana.

Desde Janeiro, o yuan chinês tornou-se uma moeda oficial no Zimbabwe, em pé de igualdade com o dolar dos EUA, o rand sul-africano e o pula do Botswana. A moeda do país é muitíssimo instável, apresentando uma hiperinflação recorde.

A reacção russa foi a de considerar que foi da responsabilidade de Mugabe ter deixado alargar-se a insatisfação na população, que o desenvolvimento é a forma de conter instabilidades, que os projectos conjuntos já subscritos por ambos os países serão para prosseguir, desejando que eles sejam a base para garantir o desenvolvimento sustentável de mais laços nos planos comercial e económico, industrial e de investimento.

O grupo russo ALROSA, de companhias mineiras de diamantes, está já envolvido em diversos projectos no país.

Depois de em 2012 a ZANU-PF ter feito um governo de coligação com o principal partido da oposição, o MDC, de Morgan Tsvangirai, ficando este como Primeiro-Ministro, criaram-se condições para uma melhoria da conjuntura, mas muitos zimbabweanos permaneceram pobres e com 72% a viver abaixo do limiar da pobreza.

Para melhorar esta situação, em 2013, o ZANU-PF e o Presidente Mugabe lançaram um programa de “indigenização”, que previa a apropriação por zimbabweanos de filiais de empresas multinacionais no país. O Governo defendia  tratar-se da única via para que mais cidadãos beneficiassem das riquezas nacionais como o ouro, diamantes e tabaco. As grandes multinacionais olharam a medida com desconfiança, até porque “nunca se tinha estabelecido como esses nacionais iriam pagar os 51% das participações”, referiu na altura, por exemplo, Nginya Mungai Lenneiye, responsável do Banco Mundial para o Zimbabué, reflectindo os interesses dessas multinacionais…

 

                                                       Breve cronologia do Zimbabwe

Final séc. XIX – Início da colonização britânica para exploração de minerais e cultivo da terra de

                           boa qualidade

1910 – Criação da Rodésia do Sul

1953 – O Reino Unido, temeroso de uma maioria negra, criou a Federação da

              Rodésia e Niassalândia

1964 – Inglaterra concedeu independência à Rodésia do Norte (hoje Zâmbia)

1965 – Ian Smith declara independência da Rodésia do Sul (depois Rodésia).

             Em 1970 os brancos proclamam a república, que acabou não

             reconhecida nem pelo Reino Unido nem pela ONU

1970 – Luta de libertação e início de um conflito sangrento, com forte

              componente racista que durou mais de 10 anos opondo os racistas brancos liderados

              por Ian Smith e a ZAPU, de Joshua Nkomo e a ZANU de Robert Mugabe ZANU tiveram

                o apoio dos governos da Zâmbia e Moçambique.

1964-1974 – Prisão de Mugabe, seguida de exílio em Moçambique.

1979 – Trégua (Acordo de Lancaster House)

1980 – A independência foi reconhecida como Zimbabwe depois de um governo de transição

             participado pela maioria negra. Fuga dos brancos excepto os proprietários agrícolas.

Década de 80 - Conflito entre os dois movimentos de libertação ZANU e ZAPU.

Até 1981 – Governador britânico interino prepara primeiras eleições livres

1981 - Eleições ganhas pela ZANU e por Mugabe

1981-1990 – Grandes progressos na educação, saúde, habitação e acção social.

1981 – 1994 – Agressões da África do Sul, com capacidade de desestabilização económica (era

                          A principal parceira comercial de todos os países vizinhos).

1986 – Os lugares ocupados por brancos na assembleia eleita foram eliminados

1987 – Fusão da ZANU com o partido rival a ZAPU, de N’Khomo, ficando ZANU-PF. Este partido

              foi formado para participar nas primeiras eleições daquele país recém-independente,

              pela junção da ZANU, uma das organizações que lutaram pela independência e de que        

              Mugabe tinha sido um dos fundadores, com a Frente Patriótica.

              Alteração constitucional que passa o regime a presidencial (presidente dirige o governo

              que nomeia após a sua eleição, com duas Câmaras, com o acontece, por exemplo, em

              França.

 

1990 – Reeleição da ZANU e Mugabe

1991 – Início da Reforma Agrária (No final da década de 1990, os brancos

             representavam menos de 1% da população, mas detinham 70% de

                terra arável).

1996 – Reeleição da ZANU e Mugabe

1999 -  Início de uma grave crise económica.

             Dificuldades na Reforma Agrária por excesso de restrições à

             distribuição de terras e por promessas não cumpridas pelos EUA,

             Reino Unido de financiarem as aquisições das terras, tal como fora previsto nos Acordos

             de Lancastar House. Queda a pique da importante produção agrícola de qualidade.

1999-2008 – Recessão em que a economia contraiu 50%, refém de um

                        baixo crescimento devido à seca e, depois, à crise internacional.

2000 – Governo laçou uma rápida aquisição de 3 mil fazendas (5

             milhões de hectares) para aí colocar 110 mil famílias em 6

             meses,

 

2008 -  Tsvangirai vence a 1ª volta das presidenciais e Mugabe a 2ª volta, mas

              com acusações sérias entre as duas de matança de apoiantes do primeiro

2012 – Deslocação de 10 mil militares para Moçambique para apoio

              ao combate de Moçambique contra a RENAMO.

              Governo de coligação com o MDC, de Morgan Tsvangirai

2013 – Programa de “indigenização” nas filiais das multinacionais.

2016 – Declaração do estado de catástrofe em grande parte das zonas

              rurais atingidas pela seca severa.

2017 – Afastamento de Mugabe por movimento militar, acompanhado de

              forte apoio popular e da própria ZANU-PF, após tenaz resistência do

              próprio a dificultar o arranque de uma nova fase no país.

              Indigitação como presidente o anterior vice-presidente, que Mugabe afastara,

              até à próxima eleição presidência em 2018.

 
Mugabe recebe as chefias militares rebeldes para negociar os termos da sua saída da presidência

 
Robert Mugabe

O papel histórico de Mugabe na luta pela libertação, na construção do país, na resistência ao neocolonialismo, na solidariedade internacionalista para com Moçambique e na resistência à influência intervencionista do regime de apartheid sul-africano contra os novos países vizinhos.

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

O golpe palaciano na Arábia Saudita: e depois de assentar a poeira?

Parece difícil acreditar que, depois dos Guardas da Revolução do Irão terem vindo em apoio dos houthis, a Arábia Saudita estar a não ter sucesso militar contra o Iémen e o apoio popular do novo rei estar reduzido, MBS pudesse investir numa guerra contra o Hezbollah e o Irão, para a qual o empurra Israel.

Não há informações sobre os reais motivos do golpe. Tudo indica que as reformas de Moahmmed bin Salman (MBS) e o seu poder pessoal estavam ameaçados. O actual governante anunciou uma série de reformas políticas e económicas no país. Enquanto reforça o seu poder político pessoal, adopta uma atitude mais agressiva na repressão política interna e na política externae na política externa.

 
Mais de mil personalidades sauditas foram presas no decurso do golpe palaciano do passado dia 4. Os detidos pertencem principalmente ao clã Abdullah, mas também a outros clãs que estariam a disputar a sucessão do trono.
Enquanto alguns dos «suspeitos» foram presos, outros estão sob prisão domiciliária no Hotel Ritz-Carlton. Dormem em colchões, guardados pelas forças de segurança.
De acordo com o Wall Street Journal, o total de bens confiscados a adversários e rivais políticos do príncipe herdeiro Mohammed Ben Salman é de 800 mil milhões de dólares. No entanto, uma grande parte desses activos está estacionada no exterior, o que forçará a Arábia Saudita a afirmar os seus direitos sobre eles.
No mesmo hotel encontrava-se – e lá continua – o primeiro-ministro do Líbano, Saad Hariri, que aí tinha anunciado a sua demissão, tendo-a comunicado por telefone ao presidente libanês Michel Aoun que afirmou que só a aceitará presencialmente.
Na sua alocução de demissão, às 11h (locais) de dia 4, o primeiro-ministro libanês justificou a sua decisão, de forma muito pouco convincente, por recear pela sua vida, aludindo ao assassinato do anterior primeiro-ministro, seu pai, Rafiq al-Hariri, e à interferência que o Irão e o Hezbollah estariam a ter contra a estabilidade política do conjunto dos países árabes.
As autoridades libanesas negaram a existência de qualquer tentativa de assassinato contra ele que a estação Al-Arabyia, logo a seguir à alocução de demissão, tinha garantido ter existido anteriormente. Será mais plausível admitir que Hariri fez o jeito ao seu credor, a Arábia Saudita, a quem deve 4 mil milhões de dólares, a título pessoal. Hariri é também, atendendo à sua dupla nacionalidade, um bastardo do clã Abdallah.
Depois da alocução, no fim do dia dá-se o ataque atribuído aos Houthis ao aeroporto de Riade com mísseis Patriot. Minutos depois, Mohammed bin Salman deu o golpe, demitindo figuras associadas a outros concorrentes ao trono, aprovou nova lei antiterrorista e pôs em acção uma Comissão de Luta Contra a Corrupção que procedeu à prisão e centenas de personalidades, incluindo príncipes. Mas anunciou também uma série de medidas que lhe garantissem o apoio popular.
Entre os detidos no hotel estão responsáveis e grandes empresas, o que dificultará certamente a atracção do investimento estrangeiro.

Estas são as notícias que nos chegam. Mas para o entendimento do que pressiona os acontecimentos na Arábia Saudita, há que atender às seguintes questões.

Por um lado, a abertura do capital da Aramco a 5% provavelmente feito na bolsa de Nova Iorque, apesar de também ter sido considerada ser feita nas bolsas de Londres e Hong-Kong.
A Aramco saudita é a maior empresa de energia do mundo. Essa abertura do capital social da companhia em bolsa de valores com a oferta pública inicial de acções (IPO, na sigla em inglês) criaria uma das mais valiosas empresas de energia do mundo.
A companhia produz mais de 10% da oferta mundial de petróleo todos os dias e controla uma grande cadeia de refinarias e instalações petroquímicas para complementar as suas operações de exploração e produção.
As estimativas quanto ao valor da Aramo variam, mas com base num número conservador de cerca de 2,5 biliões (milhões de milhões, doze zeros à direita dos 2,5), a possível abertura de 5% do capital em acções resultaria num valor potencial de 125 mil milhões de dólares – maior que o da British Petroleum (BP) e da francesa Total.
Os sauditas começaram a considerar abrir o capital da companhia num momento em que o país procura gerar receitas atendendo à queda acentuada do preço do petróleo e a uma nova fase da aproximação de uma menor dependência das economias de todo o mundo do petróleo e derivados.
A economia está em recessão e as reservas externas estão a esgotar-se.
O homem forte que sobressai do golpe palaciano em curso, o vice príncipe Mohammed bin Salman, tem dirigido o «Plano de Transformação Nacional», destinado a promover o crescimento do sector privado e a reduzir a dependência do governo da receita obtida com as exportações de petróleo.
No dia 5, Trump tweetou que «apreciaria muito que a Arábia Saudita fizesse a oferta pública da venda das acções da Aramco junto do New York Stock Exchange, coisa que considerava importante para os Estados Unidos!». Trump também deu os parabéns a Salman por tudo o que fez desde que chegou ao poder.
O Reino Unido não se fez esperar e declarou-se pronto a assinar uma garantia de empréstimo de 2 mil milhões de dólares para a Aramco, e prepara-se para hospedar a flutuação do mercado de acções do gigante da energia da Arábia Saudita.
Mas a visita do rei, há poucas semanas, feita à Rússia e a visita de responsáveis russos a MBS para falarem, em termos promissores sobre a energia e o investimento, revelam que ambos não quererão por os ovos todos no mesmo cesto
Esta precipitação da abertura do capital social poderá ter enfrentado oposições quanto à formação mais ou menos rápida do preço das acções e à consideração ou não no pacote a negociar das próprias reservas do petróleo do país.

Uma outra questão ainda é do campo económico, Mohammed bin Salman ter um programa de diversificação da economia saudita, historicamente dependente apenas do petróleo. O seu plano visa industrializar o país, criar um polo de desenvolvimento no campo da informática, aumentar o rendimento vindo de sectores não petrolíferos para um milhão de milhões de dólares por ano, criar uma política de 75% de conteúdo nacional para a exploração do petróleo, além de medidas para ampliar o turismo. Reformas estas que visam modernizar o país que sempre foi um pilar da dominação imperialista no Oriente Médio.

Outra questão prende-se com o sempre presente conflito entre a Arábia Saudita e o Irão por maior protagonismo no mundo árabe.

Uma outra questão tem a ver com o papel de Israel. De acordo com o canal de televisão israelita 10, o governo de Netanyahu enviou uma mensagem para todas as suas embaixadas à tarde para lhes pedir que:
- fizessem lobbying com o governo do país onde estão para lhes explicar o ponto de vista israelita sobre a renúncia do primeiro-ministro libanês, Saad Hariri. Este tipo de démarche é muito raro.
- convencer cada governo de que esta demissão provaria até que ponto o Irão e o Hezbollah poriam em causa a segurança do Líbano.
- afirmar que esta renúncia contradiz o argumento de que a participação do Hezbollah no governo libanês estabiliza o país.
- apoiar a Arábia Saudita na sua guerra contra os rebeldes Houthis do Iémen e dizer que o ataque de mísseis contra o aeroporto de Riade exige uma maior pressão sobre o Irão e o Hezbollah.

É evidente a crescente agressividade saudita contra o Líbano

No dia seguinte à alocução da demissão de Hariri, à queda de um míssil Patriot, e disso ter sido atribuído aos Houthis do Iémen, Sayyed Hassan Nasrallah, secretário-geral do Hezbollah, assinalou a incongruência da demissão do primeiro-ministro libanês, Saad Hariri, dizendo que a alocução lhe tinha sido imposta e reclamando o seu regresso ao Líbano.
A incongruência poderia resultar de Hariri, como outros responsáveis libaneses, ter recebido um enviado do Guia Ali Khamenei e trocado declarações amistosas nas vésperas. Hariri, poucas horas depois, foi chamado a Riade.
Na manhã de dia 6, o ministro saudita das Relações Exteriores Adel Jubair disse à CNN que os rebeldes Houthi tinham disparado um míssil no aeroporto de Riade e que isso era um acto de guerra. E o Ministro dos Assuntos do Golfo, Thamer al-Sabhan, no Al-Arabiya, descreveu o discurso de Hassan Nasrallah como uma «declaração de guerra contra a Arábia Saudita».
Curiosamente, a imprensa internacional começou por tratar da demissão de Saad Hariri, como facto independente do golpe palaciano que se deu, evidentemente com atempada preparação por Riade. Desde então, a revelação de outros factos deu crédito a que essa renúncia era apenas uma parte do golpe de Estado, dando razão a Hassan Nasrallah.
Israel não planeia atacar o Hezbollah novamente, dados os riscos militares e diplomáticos de tal operação. Mas o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu está a empurrar a Arábia Saudita para atacar a resistência libanesa e a preparar a opinião pública internacional para esse fim.
Isto acontece na altura em que se entrou num novo período no Médio Oriente, marcado pela derrota do Estado Islâmico no Iraque e na Síria e pelo falhanço de Massoud Barzani em constituir um Curdistão que fosse a plataforma para Israel atacar o Irão.
Depois da devastação pelas guerras dos outros estados da região, só saíram ilesos Israel, a Turquia, o Irão e a Arábia Saudita.
Antes do golpe de Riade, Israel tentou, sem êxito, criar um movimento separatista druzo à semelhança do que conseguira fazer no norte do país e no Iraque com os curdos.
Parece difícil acreditar que, apesar disso, e depois dos Guardas da Revolução do Irão terem vindo em apoio dos houthis, a Arábia Saudita estar a não ter sucesso militar contra o Iémen e o apoio popular do novo rei estar reduzido, MBS pudesse investir numa guerra contra o Hezbollah e o Irão, para a qual o empurram quer Israel quer os EUA.
Pouco tempo antes do presente golpe, o príncipe declarara querer modernizar o wahhabismo, corrente árabe saudita, e fazê-la evoluir para uma versão laica, chegando mesmo a prender mais de um milhar de imãs e teólogos ou a conceder às mulheres a condução automóvel ou a assistência a jogos em estádios.

Centralização do poder em MBS

Todas as decisões de prisão das personalidades referidas foram realizadas pela Comissão Anti-Corrupção criada pelo príncipe, que passou a dispor de todos os seus bens, pessoais e das empresas que dirigiam.
O príncipe MBS dirige, neste momento, os três exércitos da Arábia Saudita, a Aramco, o comité encarregado de todos os assuntos económicos que está prestes a lançar a maior privatização que o reino viu, e controla todas as cadeias de comunicação social sauditas, excepto a Al-Jazeera situada no Qatar com quem os sauditas abriram um conflito que perdura.
O rei Abdullah, que reinou entre 2005 a 2015, transformou o sunismo em religião do estado e praticou uma ditadura sangrenta e sem piedade. Depois da morte do rei Abdullah, perfilaram-se três herdeiros futuros, entre os quais MBS, que tratou agora de afastar os outros dois.
O próprio Hariri só não foi preso com as restantes personalidades do clã Abdullah por, apesar de ter anunciado a sua demissão como Primeiro-Ministro do Líbano, tinha que dar andamento à gestão corrente no Líbano até à nomeação de quem o substituísse nessas funções.
Pouco tempo antes do presente golpe, o príncipe MBS declarara querer modernizar o wahhabismo, corrente árabe saudita do sunismo, e fazê-la evoluir para uma versão laica, chegando mesmo a prender mais de um milhar de imãs e teólogos ou a conceder a condução automóvel às mulheres.
O rei que lhe sucedeu até ao presente foi Salman bin Abdulaziz al-Saud, que é um dos sete filhos do rei Abdul Aziz Al-Saud, que criou o Estado saudita moderno.
Em 2012, com a morte do príncipe-herdeiro Nayef, foi eleito príncipe herdeiro pelo rei Abdullah (seu meio-irmão) e pelo Conselho da Aliança (que reúne os principais Príncipes da Casa de Saud) e assumiu o trono saudita em 2015, estando hoje com 82 anos, e já de saúde debilitada. Com o seu golpe, MBS pode ter pretendido conjurar quaisquer movimentos que lhe retirassem a sucessão a seu pai e actual rei.
Como se percebe, esta é uma situação muito complexa mas, globalmente, a passagem da ditadura obscurantista para um «despotismo esclarecido» vai abrir novas oportunidades de resolver velhos problemas, o que não será contraditório com que, neste novo puzzle em reconstrução, os vários interesses em presença se movimentem, eventualmente em termos diferentes dos do passado recente.

Originalmente publicado em www.abrilabril.pt nesta mesma data.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Bom fim de semana, por Jorge

"I like work; it fascinates me. I can sit and look at it for hours."

"Gosto do trabalho: fascina-me.
Consigo ficar durante horas sentado a contemplá-lo."

 Jerome K. Jerome
escritor e humorista inglês
1859-1927

Homenagem a Mariano Gago


Ontem, no salão Nobre do Instituto Superior Técnico, realizou-se uma homenagem a José Mariano Gago, por iniciativa da AEIST e da Ephemera, com apoio do IST, que com a Associação protocolou na altura a criação de bolsas que ficam com o nome do homenageado.
 Estiveram presentes mais de cem colegas da AEIST, investigadores, o director do IST e o Reitor da Universidade.
 Presente esteve também a mãe, a viúva e a sua companheira de dez anos, com quem saiu "a salto" do país e que deu conta de uma experiência de educação permanente junto de emigrantes que aspiravam a ter um acréscimo na sua formação.
 Colegas da direcção a que presidiu, o Rui Teives, o João Vieira Lopes e eu próprio referiram-se ao José Mariano, em várias facetas.
 Para quem esteja interessado, deixo aqui aquilo que pensava dizer, na íntegra, já que o tempo disponível só deu para me referir a parte disso.
A dimensão do seu contributo para a comunidade científica e para a Ciência e Investigação, do sistema científico nacional, anteriormente pouco desenvolvido, é muito grande e ultrapassa as considerações que aqui fazemos na qualidade de activista e dirigente da AEIST, ocorrida particularmente entre 1967 e 1970.
O José Mariano era um jovem muito vivo e Inteligente, arguto e determinado, muito difícil de convencer, apesar de uma grande disponibilidade para ouvir os outros mas com a intenção de os convencer das suas ideias.
Com uma formação de cultura geral superior à média no IST. E com uma atitude de formação integral permanente, que ultrapassava a Engenharia.
Juntámo-nos numa direcção unitária em resultado da intervenção dos estudantes do IST no cenário trágico das inundações de 67, e um ano depois, na luta pelo apoio financeiro dos serviços sociais do Estado à cantina da AEIST, e pela reabertura do IST, que fora encerrado na sequência dessa outra luta, com processos disciplinares contra vários de nós e a exigência, posterior, de eleições para a Associação, onde a lista por ele presidida foi a única concorrente, congregando um largo apoio na escola.
O José Mariano assumiu quase como um desígnio pessoal a introdução de mudanças na AEIST e no Movimento Estudantil na medida em que as pudesse influenciar em sentidos que, pelo menos eu, não partilhei integralmente. E refiro aqui concordâncias/discordâncias, resultantes do nosso percurso comum, também baseadas em entrevistas e depoimentos que deixou.
 
 
 
 
 
1. O José Mariano queria uma AEIST mais eficaz de luta contra um governo, que ele considerava retrógrado por não sintonizado com as mudanças da ciência e da técnica e da evolução das maneiras de pensar e por impedir o intercâmbio com outros países europeus;
 
2. E, nesse confronto, deu particular atenção à guerra colonial através do apoio a deserções e da difusão de informação dos movimentos de libertação. Sobre esta questão referia a existência de reservas por parte do PCP em a AEIST assumir esse papel, o que não correspondia à realidade, tanto mais que trabalhávamos juntos. Eu valorizava as deserções colectivas que, no estrangeiro pudessem ser factor de propaganda e solidariedade internacional contra guerra.
Mas defendia as incorporações militares dos nossos colegas depois de concluídos os períodos de adiamento concedidos para se concluírem os cursos. Para, a partir daí, fazer um trabalho político nas três frentes de guerra, trabalho que ele considerava impossível de realizar.
A experiência demonstrou que isso teve algum papel no acabar a guerra, de forma pacífica nos dias seguintes ao 25 de Abril, pelo trabalho de milicianos. Os próprios militares do Quadro Permanente (QP), pelo menos os que tinham passado pelos anos de formação no IST que os seus cursos militares incluíam, também contribuíram para esse contacto expedito com os movimentos de libertação na própria frente de combate.
 
3. Teve alguma elaboração teórica com o Félix Ribeiro, de Económicas, sobre o movimento estudantil mas não consegui conhecer a sua continuidade no tempo para a poder hoje aqui comentar, também no quadro da produção teórica que realizou quando da militância de um Comité Marxista-Leninista que ele e o Vieira Lopes formaram.
 
4. O distanciamento de dirigentes de outras gerações e alguma desconsideração por construir plataformas unitárias em luta por objectivos concretos e/ou imediatos, era nele evidente. Metia-se em iniciativas em que ele pudesse ter um papel determinante. Parecia que classificava essas como lutas de "1ª geração" (a expressão é minha), como a defesa dos estudantes presos, a luta contra a repressão, a defesa das AAEE contra encerramentos, o próprio IV Seminário dos Estudos Associativos, onde se discutiram diferentes perspectivas quanto ao passado, presente e futuro das AAEE. Para ele só seriam lutas de uma "2ª geração" a participação na reforma do ensino de engenharia, a emancipação sexual, a revolução dos costumes ou a aproximação de Portugal a outros países europeus (em que o turismo estudantil seria importante), para satisfazer a “vontade irreprimível de viver numa sociedade diferente” (a expressão é dele);
 
5. Mas, não contraditoriamente, compreendia a importância da resistência a tentativas do governo e reitores de retirarem a gestão pela Associação de importantes infraestruturas que queriam passar para os Serviços Sociais ou até para a Mocidade Portuguesa. Ora esses eram meios que eram melos essenciais da relação da AEIST com os estudantes: a Cantina, a Secção de Folhas (editorial), a Piscina e o próprio Turismo estudantil, ou mesmo a revista "Técnica" o Lar ou a Papelaria para já não falar da própria AEIST no seu todo.
 Situações destas geraram reivindicações de 1ª geração mas as de 2ª sem elas sentiriam dificuldades em progredir…;
 
6. Teve um papel importante na resolução das dívidas de que a AEIST padecia e em não deixar definhar o turismo por causa delas.
Fê-lo quer junto de banqueiros portugueses - curiosamente através de um dirigente do PCP, saído da prisão quando era quadro clandestino do PCP, que fora secretário-geral da RIA, dirigente da AEIST e da Casa dos Estudantes do Império, o José Bernardino - à beira de regressar à clandestinidade), quer junto dos partidos sociais-democratas sueco e alemão com o apoio do João Vieira Lopes. Que tinham razões para influenciar politicamente o movimento estudantil português.
 
7. Finalmente, não tendo sido o nosso mandato de 69/70 particularmente intenso em lutas internas na escola, o José Mariano e todos nós estimulamos a solidariedade com as lutas dos estudantes do Instituto Industrial, do Instituto Comercial e, particularmente de Coimbra, apesar de ele ter contrariado uma plataforma nacional contra o governo, que ficou conhecida por “8 pontos”, que poderia ter sido o motor para a criação de uma União Nacional dos Estudantes Portugueses...outra forma de nos aproximarmos de outros países europeus que dispunham destas uniões facilitadoras das trocas de informação e solidariedade internacional de que precisávamos.
 
Termino dizendo que, mesmo tendo tudo isto ocorrido num breve tempo de vida, o José Mariano foi um dos grandes dirigentes que a AEIST teve.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

"Revolução de Outubro", de José Manuel Jara para o jornalista Manuel de Carvalho


Caro jornalista Manuel Carvalho

Apreciei no seu texto de hoje, “Os dez dias que deixaram de abalar o mundo”, um esforço de pluralismo nas fontes e nas pessoas que cita. Os cartazes com que ilustra o texto estão escritos em russo e como não estão traduzidos ficam por compreender, mas são interessantes graficamente mesmo para quem não sabe a língua e o alfabeto cirílico.
Queria de qualquer modo fazer alguns comentários. Com a queda da União Soviética e dos
regimes socialistas da Europa de leste é natural que todos os ideólogos que já eram ou sempre foram anticomunistas e antimarxistas (ou não marxistas) tenham aproveitado para zurzir e confirmar a posteriori a falsidade, a impostura, a utopia e distopia do sistema socialista. E retrospetivamente a desnecessidade da Revolução russa. Daí também o retrato a negro e a vermelho (de sangue) da revolução, do comunismo e do processo histórico nesses países. Mas sabemos que a derrota política na história concreta de uma ideologia e de uma filosofia  não significa a sua refutação global definitiva. Por outro lado a perenidade imaginária de um sistema de crenças não certifica a sua veracidade como é o caso das religiões, por exemplo. E só por uma profissão de fé se acredita na perenidade do capitalismo, cujos pecados são imensos, desde logo as duas Guerras Mundiais do século passado. É provável que a União Europeia não tivesse surgido sem o antagonismo com o sistema do “outro lado”, mas a sua consistência sabe-se que não tem a solidez imaginada. Os ex-países socialistas caiem num extremismo nacionalista e vão debicando quanto podem de fundos e apoios financeiros, entre o independentismo e a vassalagem. Por sua vez, a independência económica e política da Rússia,  numa estratégia contrária ao sistema global unipolar, sofre sanções e campanhas comparáveis aos tempos da guerra fria.
A História é uma processo contraditório que envolve avanços e recuos, tentativas, experimentações, falhanços, insucessos, mitos. Mas o processo prossegue numa trajetória sinuosa. Nesse sentido se poderá dizer que a Revolução francesa vencedora e derrotada, que evoluiu para o império napoleónico, tem um ideário que está em parte por concretizar ainda, mas tem um legado que foi assimilado historicamente. É o passado mas não totalmente ultrapassado.
O mesmo se poderá dizer da Revolução de Outubro e do processo de construção socialista que lhe seguiu. Foi obra o homem, visou ideias justas, concretizou muitas, falhou noutras. O próprio sistema capitalista viu-se obrigado a integrar algumas das necessidades criadas pela revolução russa no plano social. O receio da revolução levou as classes burguesas, especialmente a grande burguesia europeia e americana a fazer cedências na luta de classes global, reconhecendo direitos às classes trabalhadoras. O papel histórico da URSS, determinante e heroico na luta contra o nazismo é essencial para entender o século XX; a equiparação entre a ideologia comunista e a nazi, no sincretismo do totalitarismo é obra de revisão do que apurou o Tribunal de Nuremberga. É interessante ver alguns intelectuais franceses desancarem tudo o que lhes cheire a soviético, esquecidos da vergonhosa traição de Petain e do Regime de Vichy. Outro domínio importante foi o impacto da revolução de Outubro e dos sistema socialista nas lutas de libertação nacional (China, Índia, Vietname, África, etc.) na emancipação de povos, no desfazer do colonialismo. Tente ler discursos de Ho Chi Minh sobre esse tema. Veja o pavor que a Revolução Cubana infundiu nas burguesias compradoras da América Latina. O caso da contrarrevolução no Chile e na Argentina deve merecer atenção. Sabe-se qual o império que apoiou os banhos de sangue das extremas direitas de então.
No texto que editou procura ouvir opiniões diversas, de vários quadrantes. Por exemplo, Jaime Nogueira Pinto é um politólogo que se identificou sempre com o salazarismo e o colonialismo, claramente contrário ao 25 de Abril; não surpreende o seu gáudio com a débacle da URSS. José Milhazes é um representante dos que uma vez acreditaram e viveram ideias comunistas e depois se transferem com armas e bagagens para o outro extremo; a sua opinião de sovietólogo (russólogo) coincide com a do equivocadamente autodesignado liberal-democrata Jirinovski, na extrema –direita, quase fascista, russa. O historiador que mais cita, Orlando Figes, cuja obra também li, não tem a isenção própria a um investigador, sendo aliás criticado por esse motivo por vários autores; faz ao socialismo com base na Rússia o mesmo que Fukuyama fez da História quando anunciou profeticamente o seu fim no termo do século XX. Mas a História prosseguiu, com guerras, lutas, violências renovadas, a  par de progressos e avanços. Não sendo partidário das teses anti-historicistas de Karl Popper, creio que o real é racional, o real social, o real histórico também, não num sentido fatalista, mas segundo leis tendenciais. Não numa linha reta. História assíncrona. Atrasos e evoluções. Tentativas justas que fracassam, por erros humanos, por serem derrotadas pelo adversário, porque foram precoces, porque o imaginário empolgante não se materializou e concretizou de modo justo e estável
A filosofia marxista e muitas das teses de Lenine não foram refutadas. Por exemplo, o seu opusculo o “Imperialismo, estado supremo do capitalismo” contém verdades bem atuais. As atuais crises financeiras globais são a prova das contradições insanáveis do capitalismo já desvendadas por Marx, da oligarquia financeira, contrária a uma verdadeira democracia planetária, muito menos para uma igualdade de povos e pessoas.

As religiões são utopias sob o ponto de vista gnosiológico, não contêm conhecimentos que encerrem verdades sobre a realidade objetiva. Mas sobrevivem e prolongam-se. O seu conteúdo ético pode ser valioso mas isso não valida a questão da verdade da sua representação sobre o mundo, tanto da natureza como do próprio ser humano, o grande enigma que se tenta decifrar através da ciência e da história. Por isto, creio que não está ultrapassado nem o materialismo histórico nem o materialismo dialético, fundados na ciência e na evolução histórico-social, desde que não se tornem numa cartilha ou num livro vermelho.
Não me aprece que a evocação da Revolução Russa na sua etapa bolchevique seja apresentada de modo “frio” e “distante”, como repete várias vezes. É um passado, mas não está ultrapassada. É uma importante experiência histórica da humanidade. Se nos basearmos no real sem rótulos, afinal a China Popular, estado “ socialista” fundado em 1949, é governada pelo Partido Comunista que realizou agora o seu XIX Congresso, sendo hoje uma das maiores potências económicas mundiais com o seu contraditório ‘Sistema’ com dois sistemas. A Rússia, depois da subserviência calamitosa ao liberalismo económico ieltisiniano, como bem reconhece no seu texto, não apagou a história nem recalcou o seu passado soviético. Em muitos países ocidentais a esquerda clássica ou nova integra muitos dos valores da revolução russa e do socialismo, embora sem o impulso doutros tempos. O que virá não se sabe…Veja-se, apenas como exemplo, a orientação do Partido Trabalhista inglês de Jeremy Corbin… E o nosso país, que tanta irritação reacionária produz num António Barreto, no DN de hoje. Na América Latina não está morta a luta por sociedades em que as oligarquias do capital não sejam donas e senhoras “disto tudo”.
Vejo livros e revistas a falarem sobre a Revolução de Outubro em todas as línguas. Tenho o maior gosto em lhe enviar a referência a um colóquio na Bélgica, em Bruxelas,sobre o tema. E não para depreciar!
Permita-me dar-lhe a conhecer um autor italiano que poderá ler com interesse, Domenico Lossurdo, no seu livro “Fugir da História” e no seu opúsculo sobre a “Revolução de Outubro e a democracia” (edição Delga) .
Para concluir, apenas uma pequena correção. John Reed não está sepultado no Mausoléu de Lenine, mas sim na álea  adjacente aos muros do Kremelin, onde jazem muitos  dos líderes soviéticos mais destacados.
Obrigado pela paciência que teve em me ler.

José Manuel Jara