Número total de visualizações de páginas

segunda-feira, 7 de março de 2016

Melhorar a ADSE para liquidar o Serviço Nacional de Saúde?


A ADSE e também outros subsistemas públicos de saúde, objetivamente importantes para os seus beneficiários que dele recolhem algumas vantagens em relação a algumas áreas do SNS, têm vindo a ser usados para viabilizar financeiramente o sector privado. Este facto, aliado ao desinvestimento no serviço público tem levado ao aparecimento de novas unidades dos grupos económicos do sector lá onde a oferta pública recua. O alargamento do número de beneficiários da ADSE preparado por Passos Coelho tem que ser reconsiderado, por poder levar à liquidação do SNS. A fuga de utentes da ADSE para seguros de saúde depois do aumento das contribuições de 1,5 para 3,5%, seria “compensada” por um alargamento a mais beneficiários que saíram do SNS (desde filhos a outras “gerações” de utentes, atualmente afetos ao SNS) . E estes daqui a uns meses passavam novamente para os seguros de saúde até ao esvaziamento do SNS, que daria origem ao fim do SNS pela sua transformação numa ou várias grandes empresas de seguros que continuariam a trabalhar sempre com privados (porque sempre o fizeram) ou a sua extinção e passagem dos ativos para a ADSE. Era enfim uma privatização cheia de cinismo, hipocrisia, que inviabilizaria o direito à saúde como configurado na Constituição da República Portuguesa.

No início do ano passado, o Secretário de Estado do Orçamento de Maria Luís Albuquerque, Hélder Reis, aprovou o Plano de Atividades da ADSE para 2015, enquanto a tutela do organismo passava para o Ministério da Saúde, com Paulo Macedo.

No documento, o novo director-geral de então, Carlos Liberato Baptista, dizia que desde o ano anterior a ADSE passara a ser alimentada apenas pelos descontos dos seus beneficiários (3,5% do salário), tendo os serviços públicos deixado de contribuir para o sistema. Assim propunha “repensar o paradigma existente, lançando novos desafios na área da protecção social e na redefinição do esquema de benefícios e nos estudos que permitam equacionar o alargamento da base de beneficiários”.

Atualmente, a ADSE destina-se essencialmente à generalidade dos funcionários públicos e aposentados da Caixa Geral de Aposentações e a alguns dos seus familiares. O “primeiro objetivo” para 2015 seria desenvolver estudos que permitissem propor à tutela o alargamento da base de beneficiários titulares, para que “os trabalhadores do sector público empresarial, que preencham os necessários requisitos legais, possam também passar a inscrever-se como beneficiários da ADSE”.

Além disso, também perspetivava que os cônjuges e membros de união de facto, que então não se podiam inscrever porque trabalhavam no sector privado e beneficiavam de outro regime de segurança social obrigatória, pudessem usufruir do sistema, “mediante desconto legal complementar”.

Adicionalmente, referia que ia “ser equacionada a hipótese” de os filhos com mais de 26 anos poderem continuar a beneficiar da ADSE, também “mediante uma determinada comparticipação financeira”.
 
 

O plano baseou-se no diploma que aumentava a comparticipação dos beneficiários para 3,5%.

Funcionários públicos e pensionistas do Estado passariam a descontar 3,5% sobre os seus vencimentos e pensões para os subsistemas públicos de saúde, um aumento de um ponto percentual. Tendo em conta que esta subida seria a terceira desde Julho – quando a taxa estava nos 1,5% - os descontos dos beneficiários mais do que duplicariam em sete meses.

A opção de agravar os descontos para a ADSE surgiu como uma das medidas para “compensar” o chumbo do Tribunal Constitucional à convergência das pensões.

Cavaco Silva não promulgou o diploma mas governo insistiu e ele acabou por ser promulgado.

No diploma introduziu-se uma alteração substancial da forma como a ADSE tinha funcionado até então, equacionando-se a “criação experimental” de unidades de cuidados de saúde primários e a prestação de serviços de medicina no trabalho-áreas apetecíveis para os privados. O objetivo era cativar novos beneficiários e conter as desistências, que tinham disparado em 2014, com 2965 desistências, sete vezes mais do que as 428 saídas voluntárias verificadas em 2013. E no início de 2015 o abandono do sistema estava a ocorrer a um ritmo acima do normal, tendo desistido 246 pessoas em Janeiro.

A possibilidade de renunciar à ADSE está prevista na lei desde 2011 e, desde então, qualquer beneficiário pode deixar o sistema, uma decisão que é irreversível. Mas se até 2014 o número de saídas era reduzido, com o aumento dos descontos de 1,5 para 2,5 e depois para 3,5%, passou para níveis recorde.

O aumento dos descontos terão levado muitos beneficiários a fazer contas e a deixar a ADSE, preferindo seguros privados. Um estudo desenvolvido pela Entidade Reguladora da Saúde (ERS), então divulgado, concluía que, com o aumento dos descontos, havia funcionários públicos para quem era compensador, do ponto de vista financeiro, abdicar deste subsistema e optar por seguros de saúde privados.

A ADSE passou então a ser ainda mais a segurança social dos mais ricos.

 

O estudo pretendeu ver qual o espaço que existia para o crescimento dos seguros de saúde em Portugal e adiantava que existia conceptualmente, três grandes áreas de intervenção do seguro privado quando se tem um Serviço Nacional de Saúde num país:

a) o seguro de saúde voluntário privado pode ser substituto do Serviço Nacional de Saúde, na modalidade de opting-out (direito de opção do beneficiário), em que cobre os mesmos riscos de saúde que o Serviço Nacional de Saúde;

b) o seguro de saúde voluntário privado é complementar ao Serviço Nacional de Saúde, no sentido em cobre riscos e cuidados de saúde que não são cobertos pelo Serviço Nacional de Saúde ou dá cobertura de seguro aos pagamentos directos das famílias;

c) o seguro de saúde voluntário privado duplica a cobertura do Serviço Nacional de Saúde, como forma de assegurar um acesso mais rápido a cuidados de saúde.”

Passos Coelho fez assim o frete às seguradoras que, por vias como esta, procuram captar recursos do Estado e dos particulares que a este confiam, para prosseguir com a destruição do Sistema Nacional de Saúde

Este decréscimo de beneficiários e consequente redução de serviços contratados pela ADSE a hospitais e clínicas particulares provocaram reações destes que, apesar de já beneficiarem de apoios diretos do Estado, viviam também desse privilégio com a ADSE. Para um governo com as “preocupações sociais” como o de Passos Coelho, era evidente que ir em socorro dos privados era decisivo para mandar elaborar o estudo para o alargamento da ADSE a novos beneficiários para captar novas receitas para a ADSE, que, entretanto passou também, por via da perda desses beneficiários por grande turbulência interna com a fuga de quadros superiores.
 

 
Em Julho, numa conferência no ISCTE, Passos Coelho reagiu a uma auditoria do Tribunal de Contas (TdC), que fez saber que o aumento da taxa de desconto da ADSE para 3,5% em 2014 tinha sido "excessivo" e que apenas resultou da necessidade do Governo em reduzir o financiamento público, por imposição da troika. O primeiro-ministro acusou estas alegações de serem falsas. E que o dinheiro dos beneficiários não seria desviado para outros fins.

O relatório do TdC considerava que seria apenas necessário aplicar 2,7% para cobrir os custos e não 3,5%.

E Passos reagiu. "Na altura precisávamos de atingir um determinado objetivo para o défice público e foi considerado que o Estado deveria deixar de ser contribuinte da ADSE, ou seja, os beneficiários deveriam financiar na totalidade o seguro de saúde" (…)."O aumento para 3,5% destinava-se para dar sustentabilidade à ADSE, que tem um número de funcionários públicos mais envelhecido”.

Passos Coelho admitiu nessa altura, com cinismo (conhecia a situação da ADSE) que se a médio e longo-prazo a "ADSE vier a acumular excedentes superiores aos que são necessários para no futuro fazer face às suas necessidades, nesse caso a própria ADSE pode decidir se quer melhorar o tipo de serviço ou reduzir e baixar a contribuição dos beneficiários".

Importa relembrar que a criação da ADSE por Salazar em 1963, surgiu de pressões sentidas entre trabalhadores para estabelecer um serviço de assistência à semelhança do que já tinha sido criado em anos anteriores anos antes, as “caixas de previdência” ligadas a várias profissões de sectores privados

O “Relatório sobre as Carreiras Médicas”, divulgado em 1961, e que teve como redator-principal o Prof. Miller Guerra, propôs um sistema de saúde específico para os funcionários públicos.

Em 2008 Teixeira dos Santos fez um acordo com um dos principais grupos privados na saúde, que poderia servir de percursor do financiamento dos principais grupos privados da saúde em Portugal.

A ADSE passaria a ter a missão de principal via de financiamento dos grupos privados.

O aumento atual da percentagem de descontos para a ADSE e a passagem da sua tutela para a Saúde poderia operacionalizar de forma mais célere essa missão.

A partir do momento em que o governo de António Costa retomou a questão, referindo o alargamento dos beneficiários, os hospitais e clínicas privados, que são alimentados pelos serviços contratados pela ADSE, saudaram esse alargamento preparando-se para adquirir novos equipamentos, reforçando o seu pessoal e diversificando os seus serviços para com isso lucrarem mais. Importa que que o governo reconsidere quer este alargamento quer a descida dos atuais 3,5% nos descontos, e proponha decisões que defendam o Serviço Nacional de Saúde da sua transformação num seguro obrigatório para todos os cidadãos em nome de uma suposta “liberdade de escolha”.