No “Prós e Contras” do passado
dia 20 de Março, Fátima Campos Ferreira pretendeu lançar a discussão sobre a
questão da legalização da prostituição,
como se a questão fosse novidade. De
facto há dezenas de anos que se discute e não foi por acaso que nunca teve
acolhimento legislativo. Esta era a opção pela qual a responsável do programa manifestava
simpatia, apoiando implicitamente uma moção congressual da JS, que convidou
para o programa.
Porém, como tem sido constatado no
passado mais ou menos recente noutros países, os resultados seriam a
descriminalização do lenocínio, conferir o estatuto de empresários aos
proxenetas e ceder às pressões do turismo sexual internacional, dar força à
concepção da mulher-objecto, vítima de exploração e de um tráfico incessante. Ombrear
com a Holanda e a Alemanha nestas opções seria fatal. Não foi por acaso que foi
nestes países que a legalização se traduziu num acréscimo da prostituição e do
tráfico de menores e jovens mulheres para o negócio legalizado dos proxenetas,
e em que as prostitutas não beneficiaram dos apoios sociais antes prometidos.
Segundo Inês Fontinha, ” a
prostituição funciona em mercado de oferta (prostituta) e procura (cliente) mas
nele intervém um terceiro elemento: “O organizador e explorador do mercado, o xulo
ou proxeneta, o proprietário de casas fechadas, salões de massagens, fornecedor
de quartos de hotel ou de estúdios “ (…) “O negócio da prostituição rende ao
proxenetismo milhões de dólares americanos, porque a prostituição não se reduz
a um acto individual de uma pessoa que aluga o seu sexo por dinheiro, é uma
organização comercial com dimensões locais, nacionais, internacionais e
transnacionais (1).
Em Portugal, a actividade de
prostituição é exercida de várias formas: a prostituição de rua, em casas de massagens
e bares, em discotecas, hotéis e restaurantes que, de forma disfarçada e
discreta, servem de bordéis, na forma de agências de "serviço de
acompanhantes", que providenciam acompanhantes masculinos ou femininos
para ocasiões sociais, podendo os acompanhantes incluir serviços sexuais aos
seus clientes. Também a prostituição masculina tanto heterossexual como
homossexual ocorre de modos e locais diferentes, como bares gay, discotecas e
resorts.
Já em Outubro de 2004, alguns empresários da noite, ligados ao ramo
da prostituição e do alterne, se movimentaram para introduzir em Portugal um
novo modelo de negócio do sexo, que já existia em algumas regiões espanholas e
que tinha por finalidade contornar a lei sob o ponto de vista criminal. O
Correio da Manhã publicou então uma “investigação” em que apurou, tratar-se do
aluguer a prostitutas dos quartos de um hotel ou pensão, para fazer da
prostituta apenas cliente do proprietário, permitindo ao dono passar ao lado de
qualquer acusação criminal, já que, em termos legais, se limitava a alugar
quartos. Segundo essa reportagem, as casas de alterne fechavam, na sequência de
rusgas policiais, em que quase sempre eram detidas várias estrangeiras ilegais
e um ou outro proprietário. Mas numa ou duas semanas as casas apareciam
novamente abertas, sendo a titularidade destas de sócios ou amigos dos detidos,
vindo as raparigas de outros bares, na sequência de uma circulação que era
habitual e que tinha por finalidade tentar iludir as autoridades (2).
Mas, no ordenamento jurídico português não se criminaliza a conduta da pessoa que se prostitui.
Criminaliza-se, sim, a conduta de quem explora (lenocínio) a actividade de
prostituição por parte de outra pessoa (proxeneta). Isso está expresso no Art.º
169 do Código Penal em vigor. A prostituição em Portugal não é reconhecida
em lei específica, mas é tolerada a título individual.
A punição do lenocínio também decorre da Convenção para a Supressão
do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição de Outrem, de 1949, aprovada,
para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República nº 31/91 (publicada
no Diário da República, I série, de 10 de Outubro de 1991).
No que respeita à prostituição de menores, quem fomentar,
favorecer ou facilitar o exercício da prostituição de menores entre os 14 e os
16 anos, ou a prática por estes de actos sexuais de relevo, e quem aliciar,
transportar, proceder ao alojamento ou acolhimento de menores de 16 anos, ou
propiciar as condições para a prática por este, em país estrangeiro, de
prostituição ou de actos sexuais de relevo, é punido de forma pesada.
O sistema regulamentarista é agora preconizado na moção da JS,
sucedâneo do que vigorou em Portugal até 1963, sem alguns dos seus aspectos mais
chocantes. Este tinha então como objectivo “sujeitar a rigorosa inspecção
as meretrizes “ a fim de “ prevenir e acautelar os males que resultam para a
moral, saúde e segurança pública, da notável relaxação em que se acha esta
classe miserável”. Pelas cadernetas de identificação e exames compulsivos
passaram actos degradantes e atentatórios da dignidade das mulheres (3).
Antes disso, já em 1902, o
professor Ângelo Fonseca apresentava uma proposta de regulamentação geral das
doenças venéreas em que defendia a abolição do sistema de matrículas numa
dissertação apresentada na Faculdade de Medicina do Porto. Baseava-se num
inquérito realizado nas subdelegações de saúde, que revelava o fracasso do
regulamentarismo e dos fins a que se propunha: “ a prostituição feminina em vez
de diminuir aumentou; o número de matriculadas é diminuto e o número de
clandestinas cresce regularmente em especial no Porto e em Lisboa; os
regulamentos locais são contraditórios e, sobretudo, não são aplicados; a
inspecção sanitária é insuficiente e mal organizada, não cobre sequer as
matriculadas e tão pouco abrange as clandestinas e os clientes. O sistema até
hoje seguido degrada a mulher, sem que dessa degradação possa resultar
profilaxia das doenças venéreas”.
Em 1949, foi elaborada uma dura lei sobre doenças sexualmente
transmissíveis (DST) impondo mais restrições àqueles que se prostituíam, e proibindo
a abertura de novas casas de prostituição. As casas existentes podiam ser
encerradas caso se suspeitasse que podiam ser um perigo para a saúde pública.
Um estudo da época estimou que existiam 5.276 prostitutas e 485 casas,
concentradas nas principais áreas urbanas, nomeadamente Lisboa, Porto, Coimbra
e Évora. No entanto, aquelas prostitutas registadas representavam uma pequena
percentagem do total do conjunto. Esta lei pretendia erradicar a prostituição.
Em 1963, o regime fascista proibiu o exercício da prostituição pelo
Decreto - Lei nº 44579 de 19 de Setembro, introduzindo o modelo proibicionista, com o seu rosário de prisões, violações,
fecho de casas de passe para os meios operários e outras camadas de estatuto
social secundarizado, que coexistia com os “meios” da alta burguesia onde a
prostituição, sem referência a tal nome, era praticada. Os bordéis e outras
instalações foram encerrados. Esta lei proibicionista punha um termo à era em
que a prostituição era regulamentada, incluindo consultas médicas regulares das
prostitutas. No entanto, esta lei pouco efeito prático obteve.
Um novo abolicionismo surgiu com a legislação em vigor, através do Código Penal de 1983, que descriminaliza
as mulheres que se prostituem, renovado no Art.º 169º do Código Penal em vigor,
que pune, com pena de prisão de 6 meses a 5 anos, quem, profissionalmente ou
com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra
pessoa de prostituição ou de actos sexuais de relevo (o chamado lenocínio
simples). Esta conduta é mais severamente punida (com pena de prisão de 1 a 8
anos) se o agente usar de violência, ameaça grave, ardil, manobra fraudulenta,
de abuso de autoridade resultante de uma dependência hierárquica, económica ou
de trabalho, ou se aproveitar de incapacidade psíquica da vítima ou de qualquer
outra situação de especial vulnerabilidade (o chamado lenocínio qualificado).
As mulheres que se prostituem têm
acesso ao Serviço Nacional de Saúde e a
isenções de taxas moderadoras, como qualquer pessoa desempregada, inscrita
no Centro de Emprego ou que faça prova de insuficiência económica, ou que não
tenha uma carreira contributiva, e
descontos nos medicamentos como as restantes pessoas. Isto é garantido sem
qualquer disposição particular que as contemple.
O trabalho de “O Ninho”, instituição particular de solidariedade
social, sempre me pareceu exemplar, agindo com orientações idêntica, pelas
acções que tem vindo a realizar num caminho que é lento mas que não pactua com
demagogias liberalizantes ou “fracturantes” que são um precioso auxiliar do
lenocínio. Realiza um trabalho de aconselhamento em meio prostitucional,
dispondo de um centro de acolhimento, garantiu um lar para mulheres e seus
filhos, uma oficina para aprendizagens profissionais, com uma cantina – acções viradas
para a reinserção social através do trabalho com resultados muito positivos - e
garantindo para estas mulheres um subsídio de reinserção. Tem três acordos de
cooperação com a Segurança Social para garantir o funcionamento do centro de
acolhimento, com equipas intervindo em meio prostitucional, das oficinas e o
lar. E um acordo de cooperação com a CML que garante formação profissional em
contexto laboral, elaborado em 2001 com a então vereadora Alexandra Gonçalves, que
continua até hoje sucessivamente renovado por unanimidade em reuniões de Câmara.
Para Sandra Benfica, dirigente
do MDM, referindo-se aos instrumentos legislativos disponíveis na Europa, “Muitos
destes instrumentos legais são taxativos na consideração da prostituição como
uma forma de violação dos direitos humanos de mulheres e raparigas, bem como na
determinação da não valorização do consentimento em matéria de tráfico, pelo
que é absoluta contradição a qualificação – seja política, seja legal – da prostituição
ou do alegado “trabalho” sexual como consentido ou não consentido. Seria o
mesmo que considerar a violência doméstica ou de género como consentida ou não
consentida e, como tal, legal.” E aponta que “na prostituição não existem
“zonas seguras” para mulheres e raparigas: nos países onde a “indústria do
sexo” foi promovida a um negócio legítimo, os proxenetas passaram a
respeitáveis homens de negócios, enquanto a situação das mulheres e crianças
registou agravamento de todas as formas de exploração e violência a que estão sujeitas.”
(5)
A legalização implicaria, de
facto, a descriminalização do proxenetismo, que é actualmente criminalizado,
nos termos atrás referidos, contrariando assim a já referida Convenção sobre a Supressão
do Tráfico de Pessoas e Exploração da Prostituição de Outrem, que vincula o Estado
português. Foi o que afirmou o juiz P. V. Patto, sublinhando que “ não se
limitaria a isso. O exercício da prostituição
passaria a ser encarado como qualquer outra profissão, sujeito ao mesmo regime
laboral e fiscal de qualquer outra profissão. O proxenetismo deixaria de ser
encarado como actividade criminosa e passaria a ter o reconhecimento social e
jurídico de qualquer outra actividade empresarial. Com a legalização o Estado
transmite uma mensagem cultural: a prostituição equipara-se a qualquer outra profissão,
resulta de uma opção autenticamente livre e não implica a violação da dignidade
da pessoa humana.”
Uma participante no “Prós e
Contra”, do projecto Porto G, defendeu a descriminalização do lenocínio. A tese
de doutoramento de outra participante, tendo aspectos interessantes, está muito
condicionada pela conclusão, muito pouco fundamentada, de que a prostituição
deva ser legalizada. Como, aliás, já expressara em entrevista ao Público há
oito anos (7). A regulamentação/
legalização é uma narrativa neoconservadora assente numa percepção
anarco-burguesa, de fachada fracturante, do fenómeno da prostituição. E a moção
da JS, se vingasse como medida legislativa, seria um assinalável retrocesso
histórico nos direitos e dignificação das mulheres fazendo delas novamente
objectos sexuais e lucrativos para quem as explora.
No actual quadro legal, e
trabalhando-se a diversos níveis para que a prostituição se extinga num prazo indeterminado,
e na opinião de muitas pessoas que trabalham com mulheres que se prostituem importa
que se progrida: numa acção consequente das organizações que apoiam as
prostitutas, com vista à (re)inserção no trabalho, apoio à documentação para
garantir serviços de saúde, habitação e lares e escolas para os filhos; que a
Segurança Social e as câmaras municipais se disponibilizem para acordos de
cooperação com elas e para acções próprias; na isenção de custas judiciais com
apoio jurídico gratuito; no combate ao “turismo sexual”; em cursos de educação
sexual e planeamento familiar desde idades jovens, direito e acesso universal a
serviços de saúde e planeamento familiar; em direitos e salário iguais aos restantes
cidadãos.
(1)
Comunicação ao Congresso Virtual HIV/AIDS em
19/10/2001
(2)
Correio da Manhã, de 31 de Outubro de 2004.
(3)
Regulamento Policial de Meretrizes e Casas Toleradas da Cidade de
Lisboa”, 1858.
(4) Relatório
de Jean Fernand Laurent, a pedido da ONU, 1983.
(5) Pedro
Vaz Patto, “Prostituição – o quadro legal português”. 2013.
http://www.oninho.pt/ficheiros/documentacao/Quadro%20legal%20portugu%C3%AAs.pdf
(6) Sandra
Benfica, “Consulta da ONU Mulheres - política sobre "trabalho
Sexual", comércio sexual e prostituição”, Outubro 2016.
(4) https://jpn.up.pt/2009/09/01/alexandra-oliveira-prostituicao-devia-ser-legal-para-ser-
socialmente-aceite.
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