Por ocasião dos 100 anos da
revolução democrática burguesa na Rússia, de Fevereiro de 1917, é oportuno
recordar esse extraordinário acontecimento que, no seu desenvolvimento, é
inseparável da Revolução Socialista de Outubro, acontecimento maior em todo o século
XX e cujo centenário se comemora igualmente este ano.
A importância da Revolução de
Fevereiro ressalta do facto de ter sido a primeira revolução popular triunfante
e ainda do facto de ter posto fim a mais de 300 anos de reinado da Casa dos Románov,
a monarquia mais reaccionária e sanguinária, se ter tornado num acontecimento
de importância internacional e o proletariado russo e o Partido Bolchevique se
terem guindado de facto à condição de vanguardas do processo revolucionário
mundial. Acresce ainda que muitas das suas experiências se tornaram património
comum ao adquirem carácter de validade universal. Durante os acontecimentos
memoráveis do ano de 1917, na actividade do Partido Bolchevique e do
proletariado russo manifestaram-se processos que de um ou outro modo deveriam
repetir-se, se repetiram e não deixarão de repetir-se no futuro, em outros
países. Processos comprovados desde então até aos nossos dias e que os
comunistas portugueses, participantes na mais recente revolução que teve lugar na
Europa, puderam confirmar, nomeadamente quanto ao papel revolucionário da
classe operária no aprofundamento das transformações democráticas e na sua
defesa; o carácter indissolúvel entre a defesa das liberdades, da democracia e
a liquidação do poder económico dos monopolistas e dos latifundiários; a
tendência dos sociais-democratas para os compromissos com os derrotados da
véspera com o objectivo de sufocarem as conquistas revolucionárias do movimento
operário e popular; as ingerências do imperialismo na vida interna dos estados
e dos povos.
Ao mostrar o carácter
indissolúvel entre a satisfação das reivindicações políticas, económicas e
sociais dos trabalhadores e das massas populares e grandes transformações
sócio-económicas e quanto é ilusório falar em liberdade e democracia para as
massas mantendo intacto o poder económico, político, cultural e militar das
classes dominantes, a Revolução de Fevereiro fez avançar significativamente a
natureza e o conteúdo do conceito de revolução social.
A Revolução de Fevereiro alterou
profundamente o quadro da evolução do mundo. Com o desmoronar da monarquia
csarista, polarizaram-se as forças de classe à escala mundial; a luta de massas
contra a guerra imperialista e a luta dos trabalhadores pela satisfação de
reivindicações políticas, económicas e sociais, ganharam novo impulso;
reforçaram-se as posições orgânicas e ideológicas do movimento operário e das
correntes socialistas revolucionárias – em oposição às correntes oportunistas
da social-democracia da II Internacional, atascadas no pântano do oportunismo e
da cumplicidade com a guerra imperialista.
A confirmação prática da palavra de ordem dos bolcheviques de que para acabar com a guerra se impunha, aos trabalhadores e aos povos, a imperiosa necessidade de transformar a guerra imperialista em guerra civil contra o domínio da burguesia, ganhou grande adesão, impulsionou a luta contra a guerra e pela paz e tornou-se uma ameaça para o domínio da burguesia.
Esta palavra de ordem
bolchevique, cuja elaboração coube a Lénine, tinha um enorme alcance
estratégico na medida em que não se limitava a colocar apenas a luta por uma
reivindicação imediata – no caso da
Rússia o desencadear de acções com vista ao derrube da monarquia czarista – mas
também a necessidade de pelas formas de luta, sistema de alianças,
reivindicações políticas, económicas e sociais, ampliar esse resultado na
perspectiva do socialismo, de que a revolução democrática burguesa seria a
primeira etapa.
Obviamente que, naquela altura,
Lénine não podia adivinhar que um mês depois a Rússia iria entrar nas dores de
parto da revolução. O que sabia é que amadureciam, objectivamente, em
praticamente todos os países envolvidos na guerra, as condições para a eclosão
de uma crise revolucionária. Foi na Rússia, à época o país em que todas as
principais contradições do sistema capitalista se apresentavam de forma aguda e
concentrada que a crise rebentou. A Rússia tinha-se tornado, por um conjunto de
circunstâncias históricas, no centro do movimento revolucionário mundial. Os
efectivos da classe operária tinham crescido significativamente. Em nenhum
outro país do mundo eram tão elevados os níveis de concentração da classe
operária (60% de todos os operários trabalhavam em empresas com mais de 500
trabalhadores, havendo várias empresas com mais de 10 000 e mesmo mais de 20
000) e em nenhum outro país existia um partido revolucionário tão solidamente
implantado nas empresas e com tanta influência na direcção da luta da classe
operária. A Rússia era praticamente o único país em que a classe operária não
tinha sido contaminada pelo «vírus» do chauvinismo da II Internacional. A
Rússia foi, por isso, o país no qual se criaram, em primeiro lugar, as
condições para que a classe operária passasse à ofensiva.
O ascenso da luta revolucionária
da classe operária na Rússia pode avaliar-se pela gigantesca amplitude das lutas
das massas operárias, lutas secundadas por grandiosas acções de camponeses e
soldados.
A Revolução de Fevereiro resultou
pois de um gigantesco e combativo movimento de massas que, compaginando formas
de luta legais e ilegais, pacíficas e não pacíficas, fundiu numa torrente única
a luta da classe operária, do campesinato, dos soldados e a luta do movimento
nacional dos povos subjugados pelo csarismo, sob a direcção do Partido
Bolchevique – o único partido que dispunha de uma organização nacional e de um
programa fundamentado para a revolução.
A Revolução de Fevereiro criou
uma situação verdadeiramente original e única. O governo que ascendeu ao poder
devia esse poder às massas que apresentavam reivindicações que o governo, pelos
seus interesses de classe, não podia satisfazer, mas também não tinha força
real para enfrentar as massas que não estavam dispostas a abdicar das suas
reivindicações, nem a protelar o fim do envolvimento da Rússia na guerra. Situação
original e única dado o facto da revolução, pela sua natureza, ser democrática
burguesa e já o não ser pela forma, na medida em que a intervenção das massas e
o poder dos sovietes tinham impulsionado a revolução muito para além das
revoluções democrático-burguesas correntes.
Antestreia da Revolução de
Outubro
As teses de Lénine só fizeram
curso através de uma intensa discussão ideológica, em que muitas vezes se
encontrou em franca minoria. A realidade, a revolução no concreto, colocava
muitos problemas que a teoria não previra ou previra de forma diferente. Era
preciso perceber que «...as palavras de ordem e as ideias bolcheviques, em
geral, foram plenamente confirmadas pela história, porém concretamente as
coisas resultaram de outro modo do que quem quer que fosse podia esperar, de
modo mais original, mais peculiar, mais variado». (Lénine, Obras Escolhidas em
seis volumes, Tomo 3, edições «Avante!», pág. 122.)
Assumiram particular relevância
as questões relativas ao papel do partido revolucionário, ao Estado, à
democracia como parte integrante da luta pelo socialismo e à revolução
socialista na fase imperialista, questões a que Lénine dedicou particular
atenção desde a Revolução de 1905-1907.
A vitória de Fevereiro
traduziu-se em importantes conquistas políticas das massas populares: liberdade
de acção livre e aberta a todos os partidos políticos; libertação dos presos
políticos e regresso dos emigrados, abolição da censura à imprensa, liberdade
de expressão, de reunião e manifestação.
A existência e a actividade dos
sovietes, como expressão do poder popular eram uma conquista sem paralelo em
qualquer democracia burguesa. A Rússia era à época o país mais livre, mais
democrático do mundo.
Foi nestas condições que, como
Lénine previra, a conquista da democracia na Rússia não marcou, nem podia
marcar, o fim da revolução, mas deveria abrir caminho ao desenvolvimento da
revolução, rumo à revolução socialista.
Tendo a Revolução de 1905-1907
sido o ensaio geral das revoluções de 1917, a Revolução de Fevereiro foi a
antestreia da Revolução Socialista de Outubro, a revolução que deu aos povos da
Rússia «exaustos pela guerra, a paz, o pão e a liberdade». O ano de 1917 ficou
definitivamente gravado no calendário da história como o ano em que a classe
operária, intervindo de forma independente, demonstrou a sua capacidade como classe
criadora de uma nova forma de organização social, o socialismo.
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