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sexta-feira, 22 de novembro de 2019

De Olho no Mundo, por Ana Prestes, do Portal Vermelho


  
Correm 10 dias do golpe de Estado na Bolívia que desalojou Evo Morales da presidência, seu vice Alvaro Garcia Linera e todo seu governo. No momento em que escrevo há dados que contabilizam 26 mortos e cerca de 1000 feridos nos enfrentamentos que se deram pós-golpe. Evo, Linera e Montaño (ministra da saúde) estão no México, após oferecimento de asilo político por parte do presidente mexicano Lopez Obrador. Um golpe que se consumou com o financiamento pelos EUA de generais de alta patente, derrubada do sistema de comunicações telefonicas, bloqueio da imprensa, repressão policial, ousadia de um empresário fundamentalista religioso, instrumentalização da OEA e seus providenciais relatórios de “observação eleitoral” e um ex-presidente (Mesa) derrotado nas urnas e ressentido.

Uma das então ministras do governo Evo, Gabriela Montaño, que viajou com Evo para o exílio no México, falou à HispanTV (com sede no Irã) logo no dia do golpe e disse que a derrubada de Morales foi gestada nas entranhas da Polícia Nacional da Bolívia, com um importante grupo de membros das Forças Armadas Bolivianas. Segundo ela, dirigentes da oposição ameaçaram e tentaram dissuadir membros do MAS para em um ato de traição testemunharem contra Evo. Enquanto isso perseguiam membros do governo e familiares de Evo e Linera. Colocavam fogo em suas casas.

O governo brasileiro foi um dos primeiros a reconhecer a senadora Jeanine Añez como presidente interina da Bolívia. No texto da nota do Itamaraty está: “governo brasileiro congratula a senadora Jeanine Añez por assumir constitucionalmente a Presidência da Bolívia e saúda sua determinação de trabalhar pela pacificação do país e pela pronta realização de eleições gerais. O Brasil deseja aprofundar a fraterna amizade com a Bolívia”. Añez se autoproclamou presidente em uma sessão legislativa sem quórum suficiente da Assembleia boliviana.

Os confrontos mais recentes foram em Senkata, em El Alto, nos arredores de uma distribuidora de combustíveis, a Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), bloqueada por manifestantes desde o golpe. A repressão foi duríssima, com ataque aéreo, por helicóptero, e por terra deixando pelo menos 6 bolivianos mortos. A situação de desabastecimento em La Paz é dramática e o governo auto-proclamado de Añez decidiu comprar combustível do Chile e do Peru. Ao mesmo tempo em que se davam os eventos na distribuidora YPFB em Senkata (El Alto), ocorriam confrontos também na zona sul de Cochabamba em uma localidade chamada Sebastián Pagador (zona de migrantes mineiros) e também em Achocaya, entre a cidade de La Paz e El Alto. Ambos com reporte de feridos e falecidos.

Assim como em Senkata, Sebastián Pagador e Achocaya no dia de ontem (19), na última sexta (15) um massacre foi realizado em Sacaba, no departamento de Chapare, com o mesmo método de disparos a partir de helicópteros e deixou pelo menos 9 mortos (todos manifestantes) e um número indefinio de feridos e presos. A repressão se deu quando um grupo de manifestantes leais a Evo iniciou uma marcha em direção à cidade de Cochabamba, a 13 km de Sacaba. Próximo à ponte Hyayllani, policiais de Cochabamba, fizeram um cerco e atacaram os manifestantes.

A capital La Paz também teve sua Praça Murillo cercada por tanques militares desde segunda (18) quando se organizava uma marcha de professores das escolas rurais. Segundo denúncia do próprio Evo por twitter a tentativa era de fechar a Assembleia Legislativa Plurinacional e reprimir camponeses, indígenas, professores, estudantes, mulheres que têm se manifestado pela saída da autoproclamada Añez. Tais manifestantes, entre os quais se encontram inclusive muitas pessoas mais velhas, foram agredidos com ataques de gases químicos. A autodenominada presidente emitiu decreto (número 4078) eximindo de responsabilidade penal os militares que atuam contra as manifestações. O decreto é de sexta (15), mesmo dia em que 9 manifestantes foram mortos em Cochabamba.

O governo argentino de Macri sabia do golpe em curso na Bolívia antes de sua consumação. Seis dias antes daquele 10 de novembro, o golpista Luis Fernando Camacho realizou uma reunião com diplomatas argentinos do consulado de Santa Cruz de la Sierra. Também estavam diplomatas espanhóis. Nesta reunião Camacho pediu asilo no consulado caso o golpe fracassasse. Na reunião se falava do golpe como uma “insubordinação civil”. Na reunião teria sido informado que no mais tardar em 48 horas as Forças Armadas ocupariam o palácio presidencial. A informação foi divulgada pelo meio argentino “El Cohete A La Luna” que teve acesso a uma comunicação entre o consulado e a chancelaria argentina. No relato está informado que os dois cônsules (argentino e espanhol) teriam tentado dissuadir Camacho do que consideravam “uma loucura”.

Durante os dias prévios ao golpe o general Williams Kaliman, comandante das Forças Armadas da Bolívia não se pronunciou sobre a situação de tensão que se agravava. Em sua primeira comunicação disse que “os políticos deveriam resolver”, depois silêncio novamente até que por fim sugeriu a renúncia do presidente. Com a autoproclamação de Añez, se retirou, pediu aposentadoria e foi viver nos EUA. Kaliman foi aluno da escola de Fort Benning, a Escola das Américas, nos EUA em 2004, enviado pelo então presidente Carlos Mesa, atual derrotado por Evo nas eleições de outubro. Circulam informações de que Kaliman teria recebido um milhão de dólares por parte de Bruce Williamson, encarregado de negócios da embaixada dos EUA na Bolívia, enquanto outros generais teriam recebido valores semelhantes e vários chefes da polícia receberam 500 mil dólares.

Um dos pontos débeis para se compreender o golpe na Bolívia é a posição da COB – Central Obrera Boliviana – principal organização sindical do país. A entidade apoiou os governos Evo ao longo dos últimos anos, mas caiu na “trampa” de pedir a renúncia de Evo no dia 10/11 para “pacificar o país”. O líder da central, Juan Carlos Huarachi, acreditou na narrativa de que “o povo está pedindo novas eleições” e não tinha dimensão do golpe que estava se armando. Prova disso é que agora pedem revogação do decreto 4078, que anistia militares repressores, e a renúncia de Añez. Agora ameaçam com greve geral.

Luis Fernando Camacho é um nome importante para entender o golpe. Presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz, cidade mais populosa do país. Tem atuado nas costuras e articulações entre elementos golpistas, como diplomatas, militares, chefes da polícia e até mesmo setores sindicais e sociais anti-evo. Camacho foi um dos primeiros a entrar no palácio presidencial após a saída de Evo e com uma bíblia nas mãos disse: “a Bíblia voltará ao palácio do Governo”. Camacho tem 40 anos, veio das elites empresariais, com a família prejudicada pelas nacionalizações de Evo, inclusive. Diz não fazer política e sempre faz uma “oração ao todo-poderoso” nos eventos em que participa. Uma espécie de Bolsonaro boliviano. Só pra termos uma idéia o apelido que ele recebeu dos que o apoiam é “Macho Camacho”.

Na terça (19) a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) emitiu uma nota registrando que desde o da 20 de outubro um total de 23 pessoas morreram na Bolívia no contexto de “tensão social” (eles não falam de golpe), 715 ficaram feridas e 624 foram presas. Também mencionam os 9 mortos em Sacaba e 122 pessoas feridas. A nota diz também que causa “particular preocupação” o fato de que há operações combinadas entre a Polícia Nacional e as Forças Armadas para o “controle da ordem pública” sem que haja amparo legal para esse tipo de operações. A CIDH denuncia a restrição ao trabalho dos jornalistas e meios de comunicação. Também condena o decreto 4078 que exime militares de responsabilidades penais decorrentes da repressão. A CIDH registra que no dia 12 de novembro o bloco minoritário do senado votou sem quórum a assumção da interinidade de Añez na presidencia.

Na tarde desta quarta-feira (20) com uma manobra dos governos do Brasil e da Colômbia a OEA aprovou uma resolução sobre a situação da Bolívia que obteve 26 votos a favor, três contra (México, Nicarágua e San Vicente y las Granadinas), quatro abstenções e uma ausência. Um dos governos que se absteve na votação foi o do Uruguai e informou que a resolução “brasileira/colombiana” omite o fato de que na Bolívia se produziu uma ruptura da ordem institucional quando os procedimentos constitucionais não foram seguidos para aprovar a renúncia de Evo na Assembleia Legislativa, como determina o artigo 170 da constituição boliviana. A chancelaria uruguaia alerta ainda que a OEA não possui legitimidade para reconhecer governos de fato a partir de sua secretaria geral, como fez Almagro em relação à Añez. As negociações para a elaboração da resolução foram feitas às margens do Conselho Pemanente da OEA, também denunciou o Uruguai.

Seguindo uma matriz desestabilizadora “fake news + bots replicando a info” como a que elegeu Bolsonaro no Brasil, na tarde de hoje (20) os golpistas venezuelanos fizeram circular um áudio que contém uma conversa supostamente entre Evo e um líder sindical em que Evo orientaria para que os manifestantes bloqueassem a entrada de alimentos e bens de consumo em La Paz. Se o áudio é realmente de Evo, não é de se espantar que siga sendo o líder, agora da resistência ao golpe, se não é a voz de Evo, já sabemos bem como funcionam esses expedientes de manipulação das consciências.

Também em um movimento midiático, coordenado com a publicação da resolução da OEA, a presidente autoproclamada entregou em nome de “seu governo” um projeto à Assembleia Legislativa da Bolívia um projeto para que se inicie o “processo eleitoral 2020” no país. Ocorre que há uma quebra da institucionalidade e do próprio reconhecimento da vacância de poder uma vez que a própria Assembleia não aprovou a renúncia de Evo/Linera e muito menos teve quórum para a interinidade de Añez. A constituição prevê que um interino legítimo tem até três meses para chamar eleições e que o calendário é estabelecido pelo Tribunal Supremo Eleitoral que neste momento está sem titulares.

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