A Arábia Saudita e os Emiratos Árabes Unidos (EAU) avançam com a justificação de que o Qatar apoia grupos jihadistas mas a Arábia Saudita, que se encontra por detrás da ideologia wahhabi, também os apoia, nomeadamente na Síria.
O alcance do bloqueio ao Qatar e interdições diversas a dezenas dos seus altos cargos dirigentes, promovido pela Arábia Saudita e por outros membros do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), irá definir-se nas próximas semanas. Sendo certo que o pano de fundo dos recentes acontecimentos é mais a disputa da influência maioritária na região, tão rica em petróleo e gás natural, cruzamento terrestre e marítimo de rotas comerciais, entre a Arábia Saudita e o Irão.
Mas, vamos a factos, ao que é certo.
É certo que Donald Trump, aludindo ao presente bloqueio ao Qatar, naquele seu jeito de cowboy pretensioso, entrou na disputa diplomática entre o Qatar e os vizinhos do Golfo Pérsico ao dizer que a sua visita à Arábia Saudita «já está a dar resultados».
Numa série de tweets, Donald Trump disse que os líderes do Médio Oriente prometeram combater o extremismo e já estão a fazê-lo, ao cortarem relações com o Qatar. «Durante a minha recente visita ao Médio Oriente, disse que não podia haver financiamento da ideologia radical. Os líderes apontaram o dedo ao Qatar» e «a minha viagem já está a dar resultados. Eles disseram que iriam optar pela linha dura quanto ao extremismo. Talvez este seja o início do fim do horror do terrorismo», escreveu, sugerindo que foi ele quem incentivou o isolamento do Qatar. Já em 20 de Maio, ao ser recebido de forma imponente em Riade, Trump apoiara a Arábia Saudita ao mesmo tempo que atacava o Irão.
É certo que o Kuweit, a Turquia e a Rússia desde o primeiro dia se pronunciaram no sentido de haver negociações entre as partes para não agravar ainda mais as tensões no Médio Oriente. Os dois primeiros ofereceram-se como mediadores. E a Al-Jazeera, face à sucessão de tweets de Trump, interrogava-se, então, se não estaria a ocorrer uma mudança de política externa norte-americana em relação ao Golfo Pérsico.
É certo que a Al-Jazeera, para além de instrumento das «primaveras árabes» de 2011 e apoiante da acção de grupos terroristas, também tem sido muito crítica dos EUA e da Arábia Saudita, tratando bem o Irão, o Hezbollah ou o Hamas. E que a Arábia Saudita exige o fim deste canal.
É certo que particularmente a Arábia Saudita e os Emiratos Árabes Unidos (EAU) avançam com a justificação de que o Qatar apoia grupos jihadistas mas a Arábia Saudita, que se encontra por detrás da ideologia wahhabi, também os apoia, nomeadamente na Síria, sendo claro que a acusação pretende ser um pretexto para uma guerra económica e talvez militar contra o Qatar, visando também o Irão.
É certo que o principal apoio a grupos fundamentalistas por parte do Qatar são os «Irmãos Muçulmanos», também eles criados pelos sauditas para agirem nas «primaveras árabes», tendo agora rompido com a Arábia Saudita, que passou a apoiar apenas grupos mais fanáticos e terroristas.
É certo que a Arábia Saudita comprou material militar aos EUA no valor de 110 mil milhões de dólares, facto que o Qatar classifica de verdadeiro «suborno» aos EUA para alinharem preferencialmente com os seus opositores.
É certo que no território do Qatar está sediada a maior base militar dos EUA na região, Al Udeid, a pouco mais de 30 quilómetros da capital, Doha, construída nos anos 90 e que conta com onze mil soldados norte-americanos e a maior pista de aterragem do Golfo Pérsico, de 3,8 quilómetros, e com o Centro de Operações Aéreas Combinadas, responsável pela supervisão do funcionamento da Força Aérea dos EUA no Afeganistão, Síria, Iraque e em outros 17 países.
É certo que na Síria grupos apoiados por ambos os países se digladiam ferozmente entre si como estando a disputar zonas de influência.
É certo que, já desde as «primaveras árabes» de 2011, Arábia Saudita e Qatar procuravam controlar a região MENA (Médio Oriente e Norte de África), começando pela Tunísia para acabar na Síria. Mas já antes, nos anos 50, este despique ocorreu com o apoio da Arábia Saudita à «Irmandade Muçulmana», começando a ser inimigos com a Guerra do Golfo.
É certo que o Qatar disputa o domínio de influência sobre os países do CCG e desafia as estratégias da Arábia Saudita, ao assumir um perfil de relacionamentos internacionais diferenciado com o Irão, rompendo com a lógica Sunitas versus Xiitas, mas também com os EUA e a Rússia, por interesses comuns no abastecimento internacional de gás natural, de que Qatar e Rússia são grandes produtores, e com grandes ambições em investimentos na Europa, particularmente em França.
É certo que na recente cimeira árabe, Donald Trump colocou o Hamas dentro do mesmo quadro de organizações terroristas no discurso que fez em Riade. E, de facto, o Qatar tem laços estreitos com o Hamas. O presidente da comissão política do Hamas, Khaled Mashal, reside no Qatar.
É certo que o Qatar, para além deste seu expansionismo económico, detém uma influência política e cultural através da estação Al-Jazeera, que faz com que a Arábia Saudita a queira encerrar.
É certo que o Qatar, no início da agressão à Síria em 2011, financiou e armou rebeldes mas agora, como o confirma o Financial Times, negociou tréguas com o Irão que permitiram a retirada de populações sitiadas, duas pelas forças sírias e duas outras por forças que confrontam militarmente o regime.
É certo que na recente guerra de agressão da Arábia Saudita contra o Iémen, o Qatar, sem a condenar, ficou numa posição distanciada.
É certo que a Arábia Saudita, apesar do seu imenso poderio económico (petróleo) e militar, tem vindo a perder na guerra da Síria, está encalhada nos ataques ao Iémen e nas derrotas sucessivas do Daesh, e isso desequilibra o seu peso face ao Qatar.
É certo que o Ministro dos Negócios Estrangeiros dos Emiratos Árabes Unidos (EAU) avisou o Irão de que não deve explorar as divisões agora acentuadas no seio do CCG.
É certo que o Grupo de Bilderberg, que tem sido um instrumento de promoção nas elites dominantes de muitos países das políticas da NATO, após a sua criação em 1956 pela CIA, norte-americana, e pelo MI6, britânico, na sua última reunião de dias 1 a 4 de Junho deste ano, na sua sede, na mansão apalaçada gigante em Chantilly, no estado de Virgínia, nos EUA, terá registado no seu seio um confronto singular, a propósito do Médio Oriente, entre diferentes facções imperialistas.
«É visível que enquanto Washington deu mais força à consideração de Teerão como grande inimigo, consolidou a sua aliança com Riade, garantindo o romper com a Irmandade em troca de 110 mil milhões de dólares de armamento.»
Segundo o jornalista Thierry Meyssan, Londres estava a pressionar para uma mudança de paradigma no Médio Oriente que, mesmo que o modelo das «primaveras árabes» (sucedâneas da revolta árabe de 1916, organizada por Lawrence da Arábia para substituir o Império Otomano pelo Império Britânico) seja abandonado, o MI6 espera criar uma nova entente com base no islamismo político. E avança que o único consenso entre os «Aliados», ali tão bem representados neste grupo ultrassecreto, é a «necessidade de abandonar o princípio de um Estado jihadista. Todos admitem que é preciso devolver o diabo à sua caixa. Quer dizer, acabar com o Daesh (E.I.), mesmo que alguns continuem com a Al Qaeda». O secretismo do areópago levará, porém, o seu tempo a integrar o argumentário dos analistas
A agência de notícias do Qatar tinha feito, no início deste conflito, uma notícia atribuindo ao Emir Tamim declarações favoráveis para com o Irão e pretendendo que a sua própria família, os Al-Thani, fosse descendente do pregador Abdelwahhab, o fundador do wahhabismo. A Arábia Saudita reagiu de imediato em todos os seus canais de TV e o Qatar acabou por declarar que o sítio da Internet da sua agência tinha sido atacado por hackers e retirou a notícia. O Qatar chegou mesmo a pedir a «ajuda» do FBI norte-americano para lançar luz sobre este caso.
Na realidade, este episódio não foi mais do que a parte visível do iceberg: o Qatar poderia estar a participar com o Reino Unido numa tentativa de reorganizar o Médio-Oriente que poderia alterar todas as actuais alianças aí existentes…
É visível que enquanto Washington deu mais força à consideração de Teerão como grande inimigo, consolidou a sua aliança com Riade, garantindo o romper com a Irmandade em troca de 110 mil milhões de dólares de armamento. Londres pressiona por um entendimento entre o Irão, o Qatar, a Turquia e os Irmãos Muçulmanos.
Ainda segundo Thierry Meyssan, que não tem escondido algum apoio a Trump, «se este projecto avançasse, assistiríamos ao abandono do conflito sunita/xiita e à criação de um "crescente do islão político", indo de Teerão, a Doha, a Ancara, a Idlib, a Beirute e a Gaza. Este novo arranjo permitiria ao Reino Unido conservar a sua influência na região.»
Não terá sido por acaso que o Irão foi há dias, pela primeira vez, alvo de atentados reivindicados pelo Daesh, tendo o Irão acusado disso a Arábia Saudita e os EUA, e prometendo retaliações. Já em Março, o Daesh divulgara um vídeo em língua farsi onde pedia aos membros da minoria sunita do Irão que atacassem os símbolos religiosos e políticos da República Islâmica.
O atentado agora perpetrado contra o Mausoléu do Ayatollah Khomeini é um ataque contra um dos principais destinos turísticos da cidade de Teerão e de peregrinos que ali vão celebrar o líder da revolução iraniana que criou a República Islâmica, com ayatollahs como guardiões do regime. É um acto de desespero, também com acções em vários países europeus, contra a perda de posições do Daesh no seu «Califado» do Iraque e da Síria.
Por outro lado, a China sabe que quem criou o Califado o fez também para cortar a «Rota da Seda» no Iraque e na Síria, e lançou depois a guerra na Ucrânia para cortar «a Nova Rota da Seda», se pode estar a preparar para, preventivamente, abrir uma terceira frente nas Filipinas e uma quarta na Venezuela, a fim de cortar outros projectos de comunicação.
A agência de notícias chinesa, Xinhua, sustentava há dias que em nome da justiça e da paz, Washington e os seus aliados têm visto nas últimas décadas as suas estratégias, ditas de combate ao terrorismo no Médio Oriente, realizarem-se uma após outra, em alguns casos com contra-ataques brutais que ceifaram muitas vítimas inocentes e provocaram a catástrofe humanitária dos refugiados que caiu sobre vários países europeus.
Mas a China destacou sempre a importância de se criar uma ordem política e económica global mais justa, atendendo ao desenvolvimento desequilibrado de diferentes partes do mundo face ao actual arranjo injusto posterior à Guerra Fria, que trouxe o desespero e o ódio, criando apenas de fundamentalismo e paranoia. Enquanto se manteve ao lado das vítimas do terrorismo, estando sempre pronta para trabalhar com o ocidente e para promover o desenvolvimento comum na comunidade do futuro.
Donald Trump descreveu a luta contra o terrorismo como uma batalha entre «o bem e o mal», exortando os líderes árabes a fazer sua parte para «expulsar» o terrorismo dos seus países num discurso semelhante ao que o seu antecessor, Barack Obama, fizera em Junho de 2009, quando também prometeu redefinir as relações da América com o mundo árabe, o que não se realizou de facto.
Os EUA sabem que qualquer mudança na política real no Qatar não afectará a sua base militar. Isso está para além da disputa actual. Os laços americanos com os Estados do Golfo, especialmente com a Arábia Saudita, são mais importantes que isso. E o Qatar, com a referida base militar, serve os EUA e a CIA. Há uma apreensão dentro do mundo islâmico, talvez porque a nova estratégia dos EUA se basear num cisma entre xiitas e sunitas no mundo islâmico e particularmente no Médio Oriente, onde o conflito da Arábia Saudita com o Irão se agravou.
O bloqueio ao Qatar vai ter profundas consequências negativas para o seu povo e Washington e Riade podem até esperar, com isso, poder trabalhar para a mudança da direcção política do Qatar. Mas Doha conta com o apoio do Irão e da Turquia, bem como com a simpatia da China e da Rússia, sendo que estas têm procurado arrefecer os ânimos e feito apelos ao diálogo.
A base militar de Al Udeid, numa situação de crise acentuada, bem como o imenso material militar que os EUA venderam à Arábia Saudita, poderá até levar a uma invasão do Qatar pela Arábia Saudita e outros estados do CCG e à própria ocupação da Síria e do Irão. Ocupação em que Israel desempenharia seguramente um papel importante.
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